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Todos os nomes (excerto)


Tomou-lhe o pulso, mandou-o abrir a boca, aplicou-lhe velozmente o estetoscópio no peito e nas costas, É gripe, tornou a dizer, está com muita sorte, podia ser pneumonia, mas é gripe, leva três dias de baixa para começar, depois logo veremos. Tinha acabado de se sentar à mesa para escrever a receita quando a porta de comunicação com a Conservatória se abriu, estava fechada apenas no trinco, e o chefe apareceu, Boa tarde, senhor doutor, Diga antes má tarde, senhor conservador, boa tarde seria eu estar agora no quentinho do consultório, em vez de andar aí por essas ruas com o desgraçado tempo que faz, Como vai o nosso doente, perguntou o conservador, e o médico respondeu, Dei-lhe três dias de
baixa, é só uma gripe. Naquele momento não era só uma gripe. Tapado até ao nariz, o Sr. José tremia como se estivesse com um ataque de sezões, ao ponto de fazer abanar a cama de ferro em que jazia, porém o tremor, irreprimível, não era da febre que vinha, mas de uma espécie de pânico, de um total desnorte do espírito, O chefe, aqui, pensava, o chefe na minha casa, o chefe que lhe perguntava, Como se sente, Melhor, senhor, Tomou os comprimidos que lhe mandei, Sim senhor, Fizeram-lhe efeito, Sim senhor, Agora deixará de tomar esses e passará a tomar os remédios que o doutor tiver receitado, Sim senhor, A não ser que sejam os mesmos, ora deixe-me ver, de facto são os mesmos, só tem
a mais umas injecções, eu trato-lhe disso. O Sr. José mal podia acreditar que a pessoa que, diante dos seus olhos, estava a dobrar a receita e a guardá-la cuidadosamente no bolso fosse realmente o chefe da Conservatória Geral. O chefe que ele a duras penas aprendera a conhecer nunca se comportaria desta maneira, não viria em pessoa interessar-se pelo seu estado de saúde, e a hipótese de querer, ele próprio, encarregar-se da compra dos medicamentos de um auxiliar de escrita, seria simplesmente absurda. Depois precisará de um enfermeiro que lhe venha dar as injecções, lembrou o médico deixando a dificuldade para quem estivesse disposto e fosse capaz de resolvê-la, não o pobre diabo engripado,
escanzelado de magro, com a barba cinzenta a aparecer, não lhe bastava o evidente desconforto da casa, aquela mancha de humidade no soalho com todo o aspecto de ter sido causada por canalizações deficientes, quantas tristezas um médico poderia contar da vida, se não fosse o segredo profissional, O que lhe proíbo é que saia à rua nesse estado, rematou, Eu trato de tudo, senhor doutor, disse o conservador, telefono ao enfermeiro da Conservatória, ele compra osb remédios e vem cá dar as injecções, Já não se encontram muitos chefes como o senhor, disse o médico. O Sr. José acenou debilmente a cabeça, era o máximo que conseguiria fazer, obediente e cumpridor, sim, sempre o havia sido, e com
certo paradoxal orgulho de o ser, mas não rasteiro e subserviente; nunca diria, por exemplo, lisonjas imbecis do género, É o melhor chefe de Conservatória, Não há no mundo outro igual, Partiu-se a forma depois de o terem feito, Por ele, apesar das minhas tonturas, até subo aquela maldita escada. O Sr. José tem agora outra preocupação, outra ansiedade, que o chefe se vá embora já, que se retire antes do médico, treme de imaginar-se sozinho com ele, à mercê das perguntas fatais, Que significa a mancha de humidade, Que verbetes eram esses que estavam aí na mesa-de-cabeceira, Donde os trouxe, Onde os escondeu, De quem é o retrato. Fechou os olhos, deu ao rosto uma expressão de insuportável sofrimento, Deixem-me em paz no meu leito de dor, parecia suplicar, mas abriu-os de repente, espavorido, o médico havia dito, Cá vou à vida, chamem-me se piorar,
em todo o caso podemos ficar razoavelmente descansados, de pneumonia não se trata, Mantê-lo-ei ao corrente, senhor doutor, disse o conservador, enquanto acompanhava o médico. O Sr. José tornou a fechar os olhos, ouviu bater a porta, É agora, pensou. Os passos firmes do chefe aproximavam-se, vinham na direcção da cama, detiveram-se, Agora está com certeza a olhar para mim, o Sr. José não sabia que fazer, poderia fingir que tinha adormecido, adormecido devagarinho como adormece um doente cansado, mas o tremor das pálpebras já estava a denunciar a falsidade, também poderia, melhor ou pior, fabricar na garganta um gemido lastimoso, desses de cortar o coração, mas uma gripe comum nunca deu para tanto, só um tolo se deixaria enganar, não este conservador, que conhece os reinos do visível e do invisível de cor e salteado. Abriu os olhos e ele estava ali, a
dois passos da cama, sem nenhuma expressão no rosto, simplesmente a observálo. Então o Sr. José julgou ter tido uma ideia salvadora, devia agradecer os cuidados da Conservatória Geral, agradecer com eloquência, com efusão, talvez dessa maneira conseguisse evitar as perguntas, mas no justo momento em que ia abrir a boca para pronunciar a frase consabida, Não sei como hei-de agradecer, o chefe virou-lhe as costas, ao mesmo tempo que pronunciava uma palavra, uma simples palavra, Trate-se, foi o que disse num tom que tinha tanto de condescendente como de imperativo, só os melhores chefes são capazes de unir de forma harmoniosa sentimentos tão contrários, por isso vai para eles a
veneração dos subordinados. O Sr. José tentou, ao menos, dizer Muito obrigado, senhor, mas o chefe já tinha saído, fechando delicadamente a porta atrás de si, como num quarto de doente se deve fazer. O Sr. José tem uma dor de cabeça, mas a dor é quase nada se a compararmos com o tumulto que lá vai dentro. O Sr. José encontra-se num estado de confusão tal que o seu primeiro movimento, depois de o conservador ter saído, foi meter a mão por debaixo do colchão para certificar-se de que os verbetes ainda lá estavam. Mais ofensivo do senso comum foi o seu segundo movimento, que o fez levantar-se da cama para ir dar duas voltas à chave na porta de comunicação com a Conservatória, como quem
desesperadamente põe trancas depois de lhe haverem roubado a casa. Tornar a deitar-se foi apenas o quarto movimento, o terceiro tinha sido quando voltou atrás pensando, E se o chefe se lembra de voltar cá, nesse caso o mais prudente, para evitar suspeitas, seria deixar a porta fechada só no trinco. Decididamente, ao Sr. José, se de um lado lhe sopra, do outro lhe faz vento.

 

 
 
 
 
 

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