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Folheando com... Lídia Jorge


Combateremos a Sombra

2007-04-13

É detentora de uma obra reconhecida nacional e internacionalmente. O recente livro Combateremos a Sombra, serviu de mote à entrevista que Lídia Jorge concedeu ao Portal da Literatura.

A sensação que temos é que sofreu ao escrever este livro... 

Pode parecer, mas não corresponde à realidade. Escrever este livro não foi um sofrimento. Um enredo complexo desenvolve-se como uma equação selvagem, e é um desafio para quem o inicia. Uma espécie de jogo em que se domina parte dos dados e do percurso, mas não se conhece a solução. E não se conhece porque não é do domínio do cálculo, é do puro domínio da surpresa. Ora essa busca implica espera, persistência, repetição, mas não envolve propriamente sofrimento. Envolve apenas resistência e é bom lutar com esse atrito. Um jogo sem rede. Se a escrita me oferecesse sofrimento, eu não escreveria. Os sentimentos que me dominaram foram paixão, compaixão, fúria e melancolia, em torno da figura de Osvaldo Campos. Eu gosto de inventar.

 

«Se o senhor pensa que eu vou continuar a entregar-me a si para me coscuvilhar a memória, pode estar descansado. Eu não estou disposta a fazer esse striptease descabelado de rememorar cenas que enxovalhem a imagem das pessoas que me criaram. Não pense que eu obedeço ao esquema que tem preparado».
Uma outra sensação com que se fica é que a Lídia Jorge criou autênticos seres humanos, usurpou-lhes a psique. Quer falar-nos sobre a forma como conseguiu cavar tudo o que estava para lá do consciente das suas personagens?

A sua pergunta é séria e muito bem colocada, e no entanto eu só tenho respostas fúteis para lhe dar. Pela simples razão de que dificilmente consigo relatar com verdade a forma como chego às figuras. Em parte elas provêm da observação, do encontro na rua e na casa com pessoas reais que nunca ficam assim, mas estão sempre a servir para vestir pessoas de fantasia que já existem e contudo ainda procuram forma. Maria London existe nas salas de Lisboa porque existe na minha imaginação. Osvaldo Campos e Rossiana, a mesma coisa. Todo o escritor que se entrega à escrita ficcional transporta uma multidão de gente na cabeça. Neste caso, cavei as personagens, para usar o seu termo, escutando com tempo interioridades adivinhadas.


O leitor atento põe-se a imaginar tudo o que a poderá ter motivado a escrever este livro. Pode ser um desafio que por si só nunca conseguirá ultrapassar, mas não deixa de ser um acto de grande beleza. De beleza humana, de beleza literária, de preocupação com a sociedade onde está inserida. Já começou a ter reacções ao seu livro? Houve alguma imprevisível ou peculiar que nos queira relatar?

As primeiras reacções vieram de leitores próximos e amigos que reagiram a este meu livro dum modo muito particular. Ficaram surpreendidos com a forma, acharam que desta vez eu tinha escrito um livro directo, com uma mensagem mais explícita. E de forma diferente, mas todos me falaram de Osvaldo Campos não como personagem, mas como uma espécie de pessoa. Questionando o final, por exemplo, sofrendo com ele, reagindo a ele. Como um destino real. Isso foi muito interessante. Compreendo assim que alguns leitores mais jovens, que nos últimos dias me têm falado, o façam como se de súbito me vissem como uma escritora que pela primeira vez mergulha na crónica da nossa vida concreta e da nossa vida onírica, tão concreta como a outra,  diga-se de passagem. O que eu quero dizer é que “A Costa dos Murmúrios” ou “O Vento Assobiando nas Gruas” também têm esse lado muito explícito. Mas talvez a questão da contemporaneidade do tema, e o facto de esta contemporaneidade não ser só nossa dê essa ideia de implantação no concreto que os outros meus livros colocavam mais à distância. Aliás, um jornalista muito jovem que me veio entrevistar usou exactamente estas palavras – Este é o seu primeiro livro contemporâneo. Muito curioso, de súbito a pessoa pensa sobre o significado de tudo isto.


«Claro que eu não sei mais sobre o senhor do que o senhor mesmo sabe. E o senhor não pode saber aquilo que deseja ignorar. Ninguém é só a sua estátua de mármore, já lho disse, todos somos também o dia em que matámos um lindo passarinho, ou alguém o matou à nossa frente».
Atrevemo-nos a dizer que há muitos Londons e Ortizes na sociedade portuguesa. E Osvaldos, será que há Osvaldos em número suficiente?, será que é possível imaginar que a curto e médio prazos, tudo se pode alterar?


Osvaldo é uma figura que eu amo por tudo, sobretudo pelo seu desajeitamento. Pela sua vocação para a perda e o fracasso. Não sei explicar porque me é tão importante assim, mas sei que já o ensaiei em outras personagens. Há dias alguém me dizia que Milene Leandro é um ensaio de Osvaldo Campos. Talvez seja. A verdade é que figuras destas - os perdedores não medíocres -  são as minhas metáforas cruciais para falar duma espécie de vergonha que sinto pelas teias cruéis nas relações humanas. Vergonha e fúria. Vontade de não ter medo. Aliás, um dos meus lemas roubei-o à inscrição que Caravaggio tinha na sua faca de bolso – Onde não há esperança, não há medo. Era o lema secreto do pintor. Isto para lhe dizer que a sua pergunta é pertinente, mas eu não sei se a Literatura tem como efeito o desmantelamento da perversidade, sei apenas que sem ela o mundo seria mais perverso. E isso já é bastante, ainda que diminuto. Ou melhor, como escritora, coloco a maior esperança de todas na Literatura, essa sequência de textos destemidos que não deixa os Arquitectos London Loureiros em paz. Mas apenas porque reforça a convicção daqueles que se lhe opõem, e não porque aniquile os outros. Claro que eu não sei se este livro, que tem essa ambição, chega lá. Depende do poder da sua fantasia, e esse é um poder periclitante. Dentro dum livro e do que lhe vem de fora.


Lemos algures que escreveu este livro no Verão. Estamos na primavera a caminho do próximo verão. Quer falar-nos, por pouco que seja, dos seus novos projectos?

Como sempre, são atabalhoados os meus projectos – Muitos, simultâneos e alguns já nascem com manhas, prometem ser rápidos e são demorados, outros prometem consistência e não passam de rábulas. Livros perfeitos que não vão a lado nenhum. Como evitar as falsas pistas? Espero antes do Verão poder disciplinar estas encomendas interiores que se acotovelam. É só por isso que não posso falar de projectos. Ainda por cima, quando falo, perdem a surpresa e desaparecem logo. Não vou fazê-los desaparecer neste Portal, que é precisamente um espaço criado para as coisas que hão-de vingar…


A Lídia Jorge escreve desde 1980. Dos livros que já escreveu há algum do qual guarde uma recordação especial? Se sim, quer dizer-nos porquê?

“O Vento Assobiando nas Gruas” deixou-me uma impressão muito forte. Foi a questão da figura da Milene, que ainda anda atrás da minha vida. Antes andava adiante – durante um ano aquela imagem não me saía do pensamento, caminhava à minha frente, a rapariga ia descalça e levava um chapéu na cabeça. Fazia calor e ia pelo areal fora, na direcção duma fábrica arruinada. O que fazer com aquilo? Porque não se ia embora nem se revelava? Até que se revelou – Rodei-a, ela virou –se para mim e mostrou a cara. Tinha mais de trinta anos e comportava-se como se tivesse doze. Tudo começou aí. Mas na altura ainda não sabia que estava a ver uma figura que falava de como se faz apodrecer a Terra.

 

Gostávamos de lhe pedir que nos falasse de como vê a actual literatura portuguesa e já agora, que nos dissesse qual foi o último bom livro que leu.

A Literatura portuguesa está bem. Os escritores portugueses continuam a ser contundentes com o real, e entre os mais novos poucos são os que fizeram cursos de escrita criativa em Nova Iorque. Quando esse vírus também nos tocar, e aprendermos a narrar por medida, poderemos ser escritores conhecidos, mas não escritores portugueses. Seremos escritores que nos auto-traduzimos em português. Um dos piropos mais importantes que os anglo-saxónicos nos podem dirigir é dizerem que não sabemos narrar. Nessa estranheza está a nossa peculiaridade. Agora o que podemos é não querer tê-la. Como os chineses dizem, caminhamos de costas para o futuro, o passado é a letra que está na testa. O último bom livro português que li - tinha-o feito esperar e acabei-o há poucos dias - chama-se Camilo Broca, e é de Mário Cláudio. Tem toda a estranheza portuguesa, e toda a beleza da nossa língua, reunidas. Indispensável. Mas o último, exactamente o último livro, que reli – acabei ontem à noite – chama-se A Virgem dos Sicários, do colombiano Fernando Vallejo. Tenho a certeza que esse autor usa, na lâmina da sua faca, a inscrição de Caravaggio que já atrás citei. Aliás, muitos de nós a usamos, mas poucos sabemos manejá-la. Até pela simples razão de que a coragem é apenas uma pequena parte do talento. O resto, o resto do talento, são mil coisas que o fazem e não têm nome próprio nem se relacionam com a pátria.

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