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Raízes - Miguel Real


LIMITES

2013-07-24 00:00:00

Habitualmente interpretada como sinónimo de progresso e enriquecimento, o consumismo tornou-se, a pouco e pouco, uma palavra sociologicamente maldita.

Primeiro, o consumismo foi identificado com o abuso humano dos recursos da Terra, rompendo o ciclo natural harmonioso criado por esta desde tempos imemoriais. De facto, cada europeu vive majestaticamente, como dono e senhor da natureza, consumindo cerca 20 vezes mais do que qualquer outro habitante do planeta, com excepção dos cidadãos americanos. O consumismo tornou-se uma violência europeia. À sua mesa, tudo é possível, vinho da África do Sul, passas da Palestina, carne e queijo da América do Sul, frutos secos do Canadá, pimenta da Índia, lígias da China, tâmaras da Líbia, carne de canguru da Austrália e de crocodilo da Amazónia. O europeu fartou-se dos seus próprios produtos e dos limites por que a natureza os gerava. Ambiciona infantilmente sorver morangos todo o ano, misturá-los com sumo de manga africana e de papaia americana.

O consumismo significa, em segundo lugar, a aparente superação dos limites éticos. Tudo é passível de ser consumido, frutos, casas, até o corpo alheio. É o que intentam os dois gémeos da peça de Cláudia Lucas Chéu, Violência - fetiche do homem bom, Miguel e Gabriel. Para ambos, educados por pais supostamente intelectuais, antigos estudantes do Liceu Francês, os limites podem ser transpostos através da mercadoria comum a todos os objectos, o dinheiro. Para eles, o corpo de Sasha Grey é equivalente às pizzas - ambos podem ser comidos luxuriosamente, isto é, sem limites.

Toda a existência da Europa se resume, assim, a «ter mais», mais propriedade, mais dinheiro, mais objectos de uso. Ter mais consiste em ser mais rico e ser mais rico em ser mais poderoso, isto é, poder consumir mais do que os restantes cidadãos.

Os dois irmãos, limitados no seu "consumismo", bloqueados existencialmente pela autoridade paterna, ambicionam consumir, não já produtos, mas seres humanos

É a idolatria do mercado, conceito metafísico que agrupa tudo o que pode ser comprado e vendido, sobretudo o dinheiro, que perdeu a sua importância como valor intermediário e se tornou uma mercadoria igual às outras.

Compra-se e vende-se dinheiro para acumular mais dinheiro. Com o dinheiro, compra-se e vende-se o ser humano - Sasha Grey e o vendedor de pizzas.

Da reificação da existência em objectos de consumo opera-se o salto patológico dos dois irmãos protagonistas da peça na exploração perversa do ser humano.

Na ostentação social da substituição de objectos não necessários à vida reside a manifestação do poder dos dois irmãos, um deles sofrendo, aparentemente, de alguma patologia neurológica e ambos de patologia social.

A peça de Cláudia Lucas Chéu evidencia, assim, um individualismo hedonista solto, desgovernado, totalmente irracional, pelo qual cada europeu, presumindo atingir o mais elevado nível de consumo, estimula os sentimentos de concorrência, de competição e de inveja social nos seus concidadãos, forçando-os a regrarem a sua conduta do mesmo modo, gerando uma guerra surda e muda de todos contra todos, não através de armas, mas através da ostentação de bens.

Eis o desejo em carne viva dos dois irmãos protagonistas da peça - serem mais do que são, possuírem domínio sobre os outros ao nível físico: tanto o sexo e a comida quanto o domínio dos corpos da modelo e do vendedor de pizzas.


Colares, Sintra, 6 de Junho de 2013,

Miguel Real

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