loading gif
Loading...

Raízes - Miguel Real


FEIRA DO LIVRO DE 2030

2013-05-02 00:00:00

Sentei-me à secretária para visitar a Feira do Livro de 2030, inaugurada na véspera com um discurso laudatório da cultura tecnocrática e realista de massas do Grande-Ministro João Sócrates, projectado dos ecrãs numa imagem holográfica. Dei ordem mental ao computador para iniciar, soletrei a chave de acesso e menos de um segundo depois o ecrã ostentava o leque de programas, pastas e ficheiros. Dei nova ordem mental, “rede”, e os 11123 acessos legais, permitidos pelo Estado, encheram o ecrã. Continuei mentalmente: “Livros”, “Feira do Livro”, e as 1107 editoras do Estado encheram o ecrã; carreguei num botão lateral e o ecrã, como um harmónio, multiplicou-se fisicamente em três, acolhendo os símbolos das editoras e as novidades em destaque na feira. Seleccionei trinta editoras, em cada uma rebrilhava intermitentemente os três ou quatro livros aconselhados pelo CCP - Comité Cultural Português, nomeado pelo Governo Geral Europeu, que vencera as eleições electrónicas desde o remoto ano de 2015, assumindo o poder de nomear os Governos Regionais das antigas nações constituintes da Europa. Nos dois anos anteriores, a Europa vira-se a contas com escassez de água e os cidadãos tinham trocado a liberdade pelo conforto, entregando nas mãos de uma Comissão de Técnicos a condução da distribuição de águas nas torneiras, aceitando o cubicagem autorizada a cada família e abdicando voluntariamente, em sufrágio directo presencial (o último na Europa), do direito de livre expressão e livre manifestação, entregando toda a governabilidade europeia e nacional a comissões de técnicos. Ia ordenando mentalmente a compra de um ou outro livro aconselhado, para que o Grande Servidor (o computador central de registo da totalidade das actividades de uma antiga nação) registasse o meu interesse pelos livros aconselhados pelo Governo, sobretudo pelo Grande Ministro, João Sócrates. Comprei o Relatório Técnico sobre a Limitação do Consumo da Água, o Relatório da Boa Alimentação para Usufruto de uma Longa Vida, o Livro das Novidades Nanotecnoclógicas, o Novo Manual da Amizade Internacional…As luzinhas do bloco tipográfico, instalado em minha casa pelos Serviços Exteriores da Imprensa Nacional, dispararam, anunciando no ecrã a passagem à impressão e encadernação das encomendas segundo o modelo geral de livro foramatado pelo Estado. A “Ficha Individual de Cidadão” ocupou o ecrã central, distribuída em 25 ficheiros: Ascendência, Descendência, Dados Genéticos, Saúde, Participação Cívica, Compleição Moral, Grau de Inteligência, Conformação ao Bem Comum, Finanças…Accionei mentalmente este ícone, que se desdobrou em três, “Anos”, a ficha contabilística do deve e haver das minhas finanças desde o dia em que nascera; “Dízimos”, todas as contribuições feitas ao Estado (a palavra “Imposto” tinha sido abolida devido à sua carga semântica negativa – não havia impostos, havia dízimos voluntários ao Estado, com excepção do Natal, em que todos os cidadãos deveriam oferecer trinta por cento da seu saldo ao Estado, sacado electronicamente por este), e “Actual” – foi a este ficheiro que dei ordem de abertura. Constatando que já tinha sido deduzido o pagamento dos livros.

Deixei o bloco tipográfico a imprimir livros que nunca leria, mas ostentaria bem no centro da estante varrida pela câmara de vigilância montada em cada assoalhada, vim à janela, admirando o Grande Parque Florido, inaugurado no centro da cidade pelo Grande-Ministro Jorge Sócrates, filho de José Sócrates e pai de João Sócrates, de longos relvados e vastas alamedas substituindo a antiga baixa pombalina, e, discretamente, desloquei duas revistas de uma pilha de uma centena delas publicadas pelo Estado, de leitura obrigatória, actualizando semanalmente os deveres e direitos do cidadão, o que podia e não podia fazer. Coberto pelos quatro lados pelo monte de revistas, escondia-se um arcaico computador 786, do meu avô Luís Martins, falecido em 2011. Sentei-me e, recordando o código da clandestinidade, abri duas revistas, deixando a mão direita por baixo de uma delas. Com esta, só mexendo os dedos, nunca a mão, ia digitalizando no teclado manual o acesso a uma rede intranete dirigida pela septuagenária Rosário Pedreira, que organizara a resistência cultural clandestina à ditadura tecnocientífica imposta na Europa. Rosário Pedreira reimprimia e distribuía clandestinamente os grandes clássicos do humanismo europeu – Homero, Píndaro, Vergílio, Camões, Dante, Byron, Racine… -, cujos valores espirituais eram identificados pelo Estado com literatura supersticiosa, animada de objectivos transcendentes e religiosos, alienadora da verdade humana, fundada na tecnocracia. No ecrã do 786 brilhou a mensagem da Rosário, “abertura da Feira do Livro de 2030” às três da manhã, nos antigos esgotos do antigo Terreiro do Paço, embocadura sul, livros reimpressos mecanicamente: “Poesia Toda” de Herberto Hélder, e “Aparição”, de Vergílio Ferreira.

Azenhas do Mar, Sintra, 1 de Maio de 2013.

Miguel Real

Comentários


Ainda não existem comentários para este questionário.

Mais raízes

Voltar

Faça o login na sua conta do Portal