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Raízes - Lídia Jorge


A NOSSA CAPTURA

2012-12-21 00:00:00

Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto

o feixe das trevas que provêm do seu tempo.

Giorgio Agamben


Em Portugal, quem tem a palavra quer capturá-la. Quem tem o palco quer dominá-lo de modo a não deixar entrar mais ninguém, quem tem os números aproveita-se deles para os transformar em matéria esotérica e amedrontar aqueles que os não têm ou não os sabem ler. Este sistema de captura da palavra é tradicional entre nós, e explica o assalto de que os meios públicos são alvo por parte de continuadas figuras totalitárias da opinião, mas nunca como nos últimos meses estes princípios ficaram tão evidentes e a herança da indiferença da elite sobre os outros se tornou tão clara. Nas últimas semanas, nunca tanto se ouviu, por parte de quem tanto fala, dizer que os outros falam demais. Nunca o princípio de que quem tem queixas piorará se se queixar, se tornou tão presente. Nunca a ameaça de que a manifestação se transforma em delito económico foi tão longe. Compreende-se. À medida que o euro internacionalmente estremece, entre nós, o apelo ao silêncio funda de novo, no espírito tradicional do português, a sua vocação para a omissão e o silêncio.

É de lamentar que assim seja.

É de lamentar, sobretudo, que o silêncio se transforme, dia após dia, num síndrome de ameaça e de paralisia. A Europa democrática deveria saber que ao exigir o desmantelamento de algumas das caducas estruturas portuguesas sob este calendário impossível, exigindo em troca o silêncio, não só o inviabiliza como instala o clima de terror branco que está a assaltar as pessoas, as famílias e as empresas. Esta exigência feita sob um martelo compressor agressivo, associada à ameaça de que ao mínimo movimento de rua os ratings descem, o mais anódino dos abaixo-assinados provoca a “grecização” do país, a permanente suspeita de que quem fala quer derrubar o governo, quem critica o governo já tem um substituto à medida dos seus interesses, quem se insurge sobre medidas específicas só o faz em nome dos seus interesses pessoais, vinganças e invejas, está a criar um deficit comportamental na nossa sociedade bem mais gravoso do que o deficit financeiro que estamos a pagar. Porque este, mal ou bem, ainda se paga, mas o outro arrasta-se pelas gerações e cria iníquas formas de ser que não se inscrevem nos calendários formais. A pobreza endémica tem causas, sim. Uma das causas é precisamente a incapacidade que alguns povos têm de articular um pensamento de orgulho e respeito sobre si mesmos.

É por isso de admirar que toda uma corrente de opinião deste país aconselhe que o cidadão comum silencie os escassos meios de expressão de que dispõe. E mais, que o faça, reduzindo quem se expressa à dimensão de essa gente, ou o pagode, essa gentalha. Dito assim, com crueza, como se avaliar a temperatura política e social em público se possa confundir com o colocar do termómetro na sua própria axila, lendo-o para si mesmo, da manhã, na cama, mas diante de toda a gente. Mais do que isso, este país, depois de exangue e desmantelado, e reduzido de protectorado a uma zona levantina de negócios transumantes, poderá pagar o que desperdiçou, gastou mal, desbaratou e desviou com a cumplicidade de muitos daqueles que, agora, acham bem mandar silenciar. Mas é preciso cuidado. Pior do que tudo será, se daqui resultar um povo mudo, amordaçado pelo medo, vendo desfazer-se sob os seus olhos algumas das estrutura em que ainda acreditava, sem poder dizer uma palavra sobre a sua alternativa. Mais do que isso, não escutando por parte daqueles que elegeu, um dissílabo digno sobre o futuro.

Pior do que isso, é que se auto silencie pensando que falar, exprimir-se, reclamar é antidemocrático, e até perigosamente revolucionário. Que os membros de uma antiga elite o digam, entende-se por todas as razões e mais alguma. Mas que os jovens, jovens inteligentes, nascidos em democracia, tenham da democracia a ideia de que papéis assinados que reclamam um sobressalto diante de medidas de que até agora só o ajuste com os mercados parece ter dado resultado, e nada mais, como sendo perigosa documentação revolucionária, dá que pensar.

Dá que pensar. Provavelmente, continuando os tecnocratas a agir assim, numa vasta escala, não me espantaria se um dia destes, com os perigosos meios de rastilho que existem, de súbito, a Europa se confrontasse com o fantasma de um verdadeiro rebuliço revolucionário. Dá que pensar, porque as revoluções costumam nascer mais por causas difusas do que por objectivos claros. Não o devemos desejar. É melhor ir avisando quem muito fala que pense melhor antes de dizer que os outros falam demais. É melhor sentirmo-nos livres de nos expressarmos sobre as trevas onde todos estamos mergulhados, e ouvirmo-nos com serenidade.

Lídia Jorge

Publicado no Público, no dia 9 de Dezembro de 2012.

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