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Raízes - João Tordo


2012-06-29 00:00:00

Muitos dos grandes romances começam com pequenos equívocos. Normalmente, são dois. O primeiro equívoco é que o autor se distraiu, uma vez que – a menos que fosse louco – não se propôs à empreitada de escrever um grande romance mas sim um romance qualquer e, equivocando-se, acabou por escrever uma obra-prima; o segundo é que, dentro do próprio romance, a história verdadeiramente começa quando uma (ou várias) personagens cometem um lapso, um erro insignificante mas crasso, uma broma, como diriam os espanhóis. O Processo de Kafka principia com um equívoco – “Está preso!”; Dom Quixote é o equívoco em pessoa, julgando-se cavaleiro andante; em Madame Bovary, Charles cai no equívoco de se casar com Emma, uma mulher indomável. A lista é quase infinita. Na vida real, claro está, os múltiplos pequenos equívocos seriam perdoáveis se o mundo aceitasse a mesma quantidade (quase infinita) de ironia que está presente nas obras literárias. Infelizmente, nunca é assim: na vida real, o mundo aceita que nos equivoquemos ocasionalmente mas não aceita que nos equivoquemos a toda a hora.

O português é um tipo que se equivoca facilmente. Fruto da nossa incrível capacidade de auto-sabotagem, fazemos incursões regulares no domínio do disparate e do risível. Quando eu era mais novo, por exemplo, os professores chamavam-me regularmente Torto em vez de Tordo – curiosamente, era eu quem pagava pelo equívoco alheio, uma vez que os meus caridosos colegas da escola primária e secundária decidiam passar o resto do ano a equivocar-se; também quando eu era mais novo, e a Internet não existia para corrigir os nossos erros estapafúrdios, todos cantávamos as letras das canções em inglês de ouvido, o que levava a que, em discotecas do Algarve, os ingleses propriamente ditos se interrogassem o que raio queria dizer Billy Jean she nau my lôuv. Caramba: quando eu era tão novo que nem sequer existia, um navegador português, nomeado capitão-mor de uma viagem à Índia, descobriu, acidentalmente, o Brasil – e, num equívoco que de certeza nos custou caro, o ouro brasileiro foi entregue à extravagante corte de D. João V, que tratou de o gastar em mordomias. A História portuguesa está cheia destes pequenos episódios, já sem fazer demorada referência ao maior de todos, o Sebastianismo: só o nosso país podia produzir um rei com uma sina tão desgraçada como a de desaparecer no meio da batalha de Alcácer-Quibir, abrindo um equívoco tão grande na sucessão da coroa que nos tornámos ibéricos durante sessenta anos. Passemos por cima da Guerra Colonial e da descolonização – ou ficaríamos sem espaço e sem fôlego – e aterremos nos dias de hoje, em que os equívocos são, na linha da frente, exercitados pelos políticos. A auto-sabotagem de António Guterres em 1995 (pois não é credível que um candidato a primeiro-ministro não soubesse o PIB do país ou, pior ainda, avançasse com o PIB errado) é um dos mistérios que perdurará – embora a sua tendência para se equivocar houvesse continuado ao aceitar o cargo para depois se demitir em 2001; perdurará, também, o “enigma Fernando Nobre”, que se apresentou à corrida para a presidência da República como independente (equivocado, pois perdeu), novamente para a presidência da Assembleia da República pelo PSD (também equivocado, pois foi rejeitado pelos seus próprios pares) e, num movimento ainda mais recente e radical, se assumiu como Maçon, tendo sido este o equívoco que lhe valeu o chumbo do país inteiro. Em literatura, Nobre tem mais direito a estar no panteão do que o Quixote de Cervantes ou o Joseph K. de O Processo: nem nestes finíssimos romances se encontra tanta ironia.

Isto para dizer que, nos últimos tempos, o país se indignou com o rei de todos os enganos, o presidente da República. Convencido de que a sua própria vida era digna de um romance extraterrestre, o senhor veio a público comparar a sua vida difícil com a dos pensionistas deste país, queixando-se de que a sua pensão não chegaria para cobrir as suas despesas. Esta auto-sabotagem de grande calibre só encontra justificação se acreditarmos que, da última vez que Cavaco Silva regressou à Terra, os portugueses ainda estavam na ressaca da ditadura e, consequentemente, se deixariam levar pelo primeiro que não lhes deu uma ordem directa mas que, em gestos largamente semelhantes aos do Presidente do Conselho, se quis colocar ao lado dos pobres e oprimidos. Ora, como todos sabemos, não se pode ser o Robin Hood e o xerife de Sherwood ao mesmo tempo; da mesma maneira, não se pode ser Joseph K. e a Lei, nem Dom Quixote e o moinho de vento. A esta narrativa de ficção científica do presidente da República faltou a sabedoria dos pequenos equívocos, faltou-lhe entender que existem protagonistas e antagonistas e que a missão dos segundos é serem suficientemente irónicos para manterem os primeiros na dúvida. Teria sido mais benéfico para Cavaco Silva, em vez da patranha que nos tentou vender – que os chefes de Estado e os cidadãos usufruem dos mesmos problemas - ter optado por narrativas mais convencionais. Por exemplo, e socorrendo-nos dos clássicos: dizer à comunicação social que partilha o leito com uma mulher infiel; alegar, sem qualquer outra explicação, que anda a ser perseguido por “eles”; jurar que, em sua casa, há um auto-retrato seu que cada dia fica mais novo. Evidentemente que os portugueses o perdoariam e compreenderiam a razão dos seus equívocos. Contudo, e pensando melhor, a ficção poderia, afinal, ser científica, se o PR alegasse ter sido raptado e abusado por alienígenas. Não me parece que alguém colocasse isto em causa.

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