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Raízes - Adelina Velho da Palma


O Círculo

2010-12-13 00:00:00

A sala de espera era pequena e acolhedora. Pairava no ar um aroma peculiar, adocicado, e fazia-se ouvir uma música suave, entorpecente. O tecto era baixo, forrado a madeira, e as paredes, maioritariamente ornadas de prateleiras, exibiam uma cor quente, entre o castanho e o alaranjado. Na parede do fundo, uma janela estreita deixava entrar uma réstia de luz solar filtrada por trepadeiras. Num dos cantos da sala, a recepcionista, uma mulher jovem de rosto inexpressivo, trabalhava sentada diante de um computador, de olhar fixo no ecrã, manuseando o rato. No canto oposto, um conjunto de sofás garridos, de gosto duvidoso, tentava alegrar o ambiente.

Sentada num dos sofás, com as costas muito direitas, Maria do Carmo aguardava a sua vez. Nunca tinha estado numa sala assim. Para além da recepcionista, era a única pessoa presente. Os seus olhos observavam os variadíssimos objectos que enchiam as prateleiras. Havia de tudo – imagens de anjos, aromas, paus de incenso, chás, livros sobre astrologia e ciências ocultas, velas e sacos de pó de todas as cores e tamanhos... Pequenos cartazes dispersos ofereciam a preços módicos um vasto leque de serviços esotéricos especializados, desde consultas de Tarot e alinhamentos de chakras até mapas astrais e fotografias da aura.

Para manter a postura, descruzou e tornou a cruzar as pernas. Sentia-se tensa e cheia de dúvidas. Sabia porque é que estava ali, mas não fazia a mais pequena ideia da entrevista que a aguardava. Suspirou e tentou relaxar, permitindo que as costas se apoiassem na parte posterior do sofá. Fechou os olhos e, numa tentativa de sistematizar as suas próprias ideias, passou em revista os acontecimentos que a tinham conduzido até àquele lugar.

O marido, José António, andava intratável. Desde sempre calmo e cordato, sofrera, nos últimos meses, uma considerável mutação. A pouco e pouco, tornara-se desagradável e intolerante, como se vivesse debaixo de uma grande tensão. A paciência havia-o abandonado gradualmente e, nos últimos tempos, qualquer contrariedade, por insignificante que fosse, provocava-lhe uma reacção desmedida, desproporcionada em relação à real dimensão do aborrecimento.

Em vão Maria do Carmo tentara perceber as razões de tão estranha metamorfose. Chegara a suspeitar de que o marido estivesse doente. Havia tempo soubera de um caso semelhante, em que acabara por se descobrir que o paciente sofria de um tumor nas cápsulas supra-renais. Porém, usando de diplomacia, indagara junto dos colegas do marido se a sua alteração de comportamento seria extensiva ao emprego. E o que soubera levara-a a concluir que não. Na fábrica onde trabalhava como chefe de produção, José António continuava a ser considerado de fácil relacionamento e mantinha a boa imagem que sempre tivera.

Por consequência, Maria do Carmo já não tinha dúvidas de que a alteração do marido se circunscrevia ao ambiente familiar. O que a levava a presumir que seria ela a causa próxima dessa modificação. No entanto, repudiava qualquer explicação que envolvesse a existência de outra mulher. E, amando o marido, suportara os seus maus humores com paciência, agarrando-se à esperança de que tratar-se-ia de uma fase passageira.

Todavia, dois dias antes, as coisas haviam mudado de cariz. José António pisara o risco. À noite, após o jantar, por uma questão de lana caprina, tinha-lhe levantado a mão! Não lhe chegara a bater, mas o braço fora erguido, num inequívoco gesto de agressão, e Maria do Carmo ficara em estado de choque. Nunca, no decorrer dos já doze anos de casamento, imaginara que um dia pudesse vir a defrontar-se com uma tal situação. Nessa noite não conseguira dormir e, no dia seguinte, indignada e deprimida, desabafara com a sua amiga Joana.

Maria do Carmo abriu os olhos e sorriu. Joana era uma boa amiga. Todavia, as duas eram muito diferentes. Enquanto Maria do Carmo parecia exactamente aquilo que era - uma engenheira, funcionária pública, racional e de poucas falas, Joana, empresária de sucesso, detentora de um grande dom de palavra, escondia uma perfeita simbiose de misticismo e pragmatismo.

Após ouvir o relato do drama conjugal da amiga, Joana dissera-lhe:

- Conheço uma pessoa que pode ajudar-te.

- Quem?

- Uma pessoa...

Maria do Carmo sentia-se tão em baixo que nem chegara a perceber muito bem de quem se tratava. Uma espécie de vidente, supunha. O nome era Luís do Lago. E nem tivera forças para protestar. Apática, deixara-se conduzir por Joana até uma obscura ruela na vila de Sintra, nas faldas da serra. Aí, Joana largara-a à porta de uma casa baixa, de aspecto menos que modesto, exclamando:

- Boa sorte! - e abalara a fim de ir tomar chá ao centro da vila, enquanto aguardava o fim da entrevista da amiga.

Como um autómato, Maria do Carmo tocara à campainha premindo um botão enferrujado. A porta abrira-se e ela descera umas escadas rangentes e sombrias, rumo a uma cave em cuja porta se encontrava uma recepcionista jovem, de aspecto vulgar. E assim chegara àquela sala de espera. A consulta, com carácter de urgência, fora conseguida por especial favor, visto Joana ser uma cliente antiga de Luís do Lago. E fora necessário fornecer certos dados previamente - a data de nascimento de Maria do Carmo e o diminutivo pelo qual os pais a chamavam em criança.

Os olhos de Maria do Carmo humedeceram com a lembrança do marido numa atitude ameaçadora, de braço erguido e fácies transtornado. E percebeu que só o desespero a podia ter levado até ali.

Um ruído de vozes chamou-a à realidade. Viu a porta da sala de espera, até aí aberta, fechar-se, e ouviu uns passos que se afastavam. Pouco depois, a porta abria-se de novo, deixando entrar um homem baixo e atarracado, muito largo de ombros e totalmente calvo, envergando umas calças de ganga e uma swet shirt de aspecto enxovalhado. O homem olhou na direcção de Maria do Carmo e disse-lhe com voz roufenha:

- Desculpe ter fechado a porta mas, neste ramo, temos de usar a máxima discrição...

Maria do Carmo fitou-o incrédula. Imaginara alguém com aspecto menos abrutalhado. Joana tinha-lhe dito:

- Aquele homem tem qualquer coisa...

- É simpático?... Atraente?... – perguntara Maria do Carmo.

- Não! Nada disso!... Mas tem qualquer coisa...

E Maria do Carmo ficara sem perceber a que é que a amiga se referia. Mas a criatura que tinha diante de si era muito pior do que previra. Podia ser um estivador.

- Vamos?

Com relutância, Maria do Carmo seguiu o homem até uma salinha exígua, com uma mesa e duas cadeiras. Uma porta envidraçada entreaberta deixava entrar uma aragem fresca, proveniente do quintal das traseiras. Ouvia-se, insistente, o ladrar de um cão. Maria do Carmo sentiu uma súbita vontade de desistir e sair dali para fora. Porém, enquanto o homem se aproximava da porta e a encostava, reparou em várias imagens de Cristo que ornamentavam as paredes, e esse facto aquietou-a. No entanto, decidiu manter os sentidos alerta. Tudo menos ser vítima de uma mistificação.

O homem sentou-se e fez-lhe sinal para que o imitasse. Ficaram frente a frente. Maria do Carmo notou que os olhos de Luís do Lago eram azuis muito pequenos, e a cara grande, redonda, escanhoada e lisa, quase imberbe. Impossível calcular-lhe a idade. Tanto podia ter trinta anos como sessenta.

- Não gosto de consultas de última hora! – exclamou com a sua voz fanhosa, fitando Maria do Carmo com os olhos penetrantes - Preciso de tempo para me preparar!...

Dito isto, agarrou numa espécie de listagem de computador, que tinha em cima da mesa, e começou a observá-la atentamente. Afinal isto mete ciência, pensou Maria do Carmo, vislumbrando a ininteligível profusão de números impressa na listagem.

- Você tem um filho, com dez ou onze anos, que é muito parecido consigo – afirmou Luís do Lago, depois de vários segundos de perscrutação da listagem.

- Sim, é verdade – respondeu Maria do Carmo pensando “ele podia ter sabido disso por Joana”.

- O seu ponto fraco são os intestinos!... – acrescentou franzindo o cenho, sem despegar os olhos da listagem..

- Sim... (que assunto desagradável...)

- E vai fazer uma viagem...

- Sim, provavelmente... (Grande previsão!... Hoje em dia toda a gente viaja...)

- Você vai... – Luís do Lago pareceu concentrar-se - ...a Estocolmo!...

Maria do Carmo susteve a respiração. Daquilo, ninguém podia saber, nem mesmo Joana. Durante uma pausa do mau génio, José António falara-lhe de uma hipotética viagem a Estocolmo que andava a planear. Maria do Carmo olhou para Luís do Lago com um súbito interesse. Este pusera de lado a listagem e manuseava agora um baralho de cartas de Tarot, sebosas e alquebradas. As suas mãos eram enormes, papudas e róseas, sem pelos, com unhas de um oval belíssimo, muito largo, fazendo jus à dimensão das falangetas. Quando falou, fê-lo com autoridade:

- Descruze as pernas e parta com a mão esquerda – disse, indicando o baralho.

Maria do Carmo obedeceu.

- Que é que queres saber? – perguntou, cravando o olhar em Maria do Carmo. Esta estremeceu ante o inesperado tratamento por tu.

- Bem, de há uns tempos para cá, o meu marido anda sempre irritado. Quero saber o que se passa com ele, se tem alguma amante... Enfim, o que vai acontecer ao meu casamento... – balbuciou.

As grandes mãos de Luís do Lago pegaram no baralho e, com destreza, foi voltando e dispondo cartas em montículos, numa espécie de círculo.

- Hum! – exclamou, olhando para as estranhas figuras das cartas – isto está mau!... Se continua assim, acaba em divórcio...

- Oh!

- É isso que tu queres?

- Não!

- Não mesmo?...

Maria do Carmo calou-se. As lágrimas caíam-lhe dos olhos em dois fios paralelos. Como confessar certas dúvidas que ultimamente a assaltavam? Não sabia o que dizer.

- Quero o que for melhor para o meu filho! – acabou por retorquir enxugando as lágrimas, como se a resposta lhe fosse tirada a ferros. Depois, lembrou-se de que trazia sempre consigo uma fotografia do marido. Tirou-a da carteira e mostrou-a a Luís do Lago.

- Ele não tem nenhuma amante – disse este, mal olhou para a fotografia – mas é uma pessoa dependente, que sofre...

Luís do Lago recolheu as cartas, baralhou-as, pediu a Maria do Carmo que as partisse e de novo as distribuiu aos montículos. Quando voltou a falar, a sua voz tinha, pela primeira vez, um timbre de simpatia:

- Sabes, tudo o que fazemos aos outros, a nós retorna... E tudo o que nos rodeia é o reflexo de nós próprios...

Durante uns segundos Luís do Lago observou as cartas. Parecia hesitar. Por fim, exclamou num tom peremptório:

- Vamos acalmá-lo!

Levantou o corpanzil da cadeira e saiu da saleta. Quando voltou, trazia um pequeno saco transparente contendo um pó de cor amarelo vivo.

- Este saco – disse, sentando-se – tem um pó extraído de uma terra muito especial... Vais colocar uma pitada deste pó, todos os dias, dentro dos sapatos do teu marido – e frisou – Dentro dos sapatos que o teu marido calçar nesse dia.

- E que faz isso?

- Vai acalmá-lo.

- Meu Deus! E resulta? Como? Porquê? – a racionalidade de Maria do Carmo exigia respostas.

- Não te posso explicar o como nem o porquê. Mas que resulta, resulta! Vais ver!...

Maria do Carmo fitava a saqueta.

- Como é que se chama o teu marido? – perguntou Luís do Lago, pegando num pequeno papel onde desenhou um pentagrama..

- José António.

- O nome todo, filha!

- Oh, desculpe! José António da Silva Domingues de Carvalho.

Luís do Lago escreveu o nome debaixo do pentagrama. Maria do Carmo atreveu-se a perguntar:

- E... se não fizer efeito?

- Só depende de ti! Tens de fazer tudo como eu te disse...

- E... devo cá voltar?

- Se quiseres... Mas não gosto que criem dependências comigo. Estou aqui para ajudar as pessoas e não para ganhar dinheiro. Se quisesse enriquecer, tinha continuado na construção...

Ah, afinal sempre era um construtor, pensou Maria do Carmo. Mesmo empresário, não deixava de ser um homem das obras...

Luís do Lago levantou-se, dando a entrevista por concluída. Perplexa, Maria do Carmo não encontrou mais nada para dizer. Não previra um fim tão abrupto. Ergueu-se da cadeira devagar, com o saco de pó na mão e as pernas bambas. Sentia-se esgotada.

Pagou a consulta à recepcionista - vinte euros - e saiu para a rua. A noite tinha caído e estava frio. A encosta da serra, imensa e negra, parecia tão oculta e recheada de segredos como o estranho homem com quem acabara de falar. O vento provocava um restolhar de folhas. Uma lua branca era visível ao longe, e a vila, em baixo, tinha um ar fantasmagórico. Maria do Carmo teve um arrepio. Nervosa, sacou o telemóvel da carteira e ligou para Joana. Dez intermináveis minutos depois, os faróis do carro da amiga iluminavam a ruela.

- Então? Que te disse ele? – perguntou, mal Maria do Carmo entrou no carro.

- Bem, para começar, disse que o José António não tem nenhuma amante.

- Se ele o diz, é verdade.

- E vendeu-me um pó para eu pôr dentro dos sapatos dele!... – prosseguiu, sentindo-se completamente ridícula – ...achas que ponha?

- Claro! Se ele mandou é o que deves fazer. Mas... – acrescentou Joana a rir – ...isso é uma coisa que não vais poder contar a ninguém, nem aos teus netos!...

- Pois não... – e, aborrecida consigo mesma, Maria do Carmo resmungou em voz sumida – Como é que podes acreditar nestas coisas?!.. Que homem horrível! Nunca mais cá venho!...


Maria do Carmo chegou a casa muito tarde. O filho já dormia. O marido estava na sala a ler um jornal, com ar carrancudo, e nem lhe respondeu à saudação. Ainda se encontrava no rescaldo da cena de há dois dias. Maria do Carmo fitou-o durante alguns momentos mas acabou por encolher os ombros e ir deitar-se. Antes de adormecer lembrou-se de David, um colega do serviço com quem simpatizava. Ultimamente tinham-se aproximado. Embora não lhe fizesse confidências, gostava de conversar com ele. Ajudava-a a esquecer as diatribes do marido. Riam muito os dois. Claro que nunca lhe poderia contar que havia consultado um cartomante. Seria uma bomba. E era curioso que se tivesse lembrado dele fora do ambiente de trabalho. Nunca tinha acontecido. Mas o melhor era esquecer o que fizera. Estava muito cansada mas, por outro lado, estranhamente calma. E, pouco depois, mergulhou num sono profundo, sem sonhos.

O dia seguinte era sábado. Maria do Carmo levantou-se deixando o marido na cama a dormir. Ao recordar os acontecimentos da véspera pareceu-lhe que tinha decorrido uma eternidade sobre eles. Mas logo a seguir lembrou-se do pó amarelo e ficou tensa. Foi buscar a carteira e, com as mãos trémulas, retirou dela o saco de pó. Agora, à luz solar, o amarelo era ainda mais forte, cor de gema de ovo. Abriu-o cuidadosamente e tocou-lhe com os dedos. Exalava um cheiro esquisito e era extraordinariamente fino. Olhou para os dedos e viu que estavam amarelos. Que horror! Tinha de fazer desaparecer aquilo! A não ser que... Mas não. Ela não acreditava em bruxedos. Num momento de angústia, deixara-se arrastar por Joana, apenas isso. Além do que, aquela cor sobressairia muito, qualquer que fosse o tom das peúgas. José António poderia notar o colorido nas meias e desconfiar. Teria de colocar uma quantidade diminuta, que decerto não seria eficaz... Ora, que estupidez de raciocínio! Nada daquilo poderia resultar!..

Abanou a cabeça. Sentia-se como um burro no meio de uma ponte. Todavia, já que tinha ido tão longe, não perdia nada em experimentar. E, hesitante, com os dedos tingidos de amarelo, dirigiu-se à sapateira da casa e tocou a parte interior dos sapatos vela do marido, que eram os que ele costumava calçar durante os fins-de-semana. A seguir foi sentar-se na sala a fazer tricô compulsivamente, enquanto escutava o bater do seu próprio coração.

Tinha passado uma hora quando Maria do Carmo ouviu José António levantar-se e dirigir-se à casa de banho. Vinte minutos depois estava diante dela, lavado, barbeado, vestido e... calçado com os sapatos vela. Tinha os olhos húmidos de comoção.

- Minha querida! – exclamou, olhando-a com ternura – quero pedir-te perdão!...

A surpresa de Maria do Carmo foi tão grande que ficou sem palavras. Raramente vira o marido assim. Seria coincidência? Ou seria... ? Ela colocara tão poucochinho... Mal aflorara os sapatos com os dedos... Que disparate! Estava a raciocinar como se, efectivamente, o pó estivesse na origem da atitude do marido. Porém, fosse do que fosse, o resultado agradava-lhe. E foi com prazer que se aninhou naqueles braços que havia muito não se estendiam para ela.

Este episódio marcou o início de uma época de acalmia no casamento de Maria do Carmo e José António. Não obstante alguns altos e baixos, a conduta deste regressou, a pouco e pouco, aos parâmetros normais.

Maria do Carmo não sabia o que pensar. Quando, algum tempo depois, contactou com Joana, foi forçada a confessar-lhe que as coisas estavam muito melhores.

- Não te tinha dito? Aquele homem é extraordinário... – respondeu a amiga.

- E eu não sei que te diga. Estou espantada. Mas ainda não estou convencida de que não se trate de uma coincidência...

- Pensa o que quiseres, mas não interrompas o tratamento!... – retorquiu Joana, antes de se despedir.

Com efeito, o intelecto de Maria do Carmo escamoteava o que se passava à sua volta. No entanto os factos estavam ali, inegáveis, diante dos seus olhos. Por conseguinte, não se atrevia a cortar com o pó amarelo.

Cumpria escrupulosamente as orientações recebidas de Luís do Lago. O que não era fácil. O pó tinha de permanecer escondido num local onde ninguém o descobrisse, imune à curiosidade do filho que tinha a mania de lhe mexer nas gavetas. Além disso, era preciso adivinhar que sapatos o marido iria calçar, sob pena de ter de aplicar o pó em vários pares. Por último, sempre que dormiam fora de casa, Maria do Carmo tinha de transportar o pó consigo, com todos os riscos inerentes.

A quantidade que aplicava era mínima. Mesmo assim, dada a cor garrida do dito, Maria do Carmo estranhava que José António nunca reparasse nos vestígios de pó nas meias que despia todos os dias. Parecia quase um milagre. O que a fazia lembrar-se amiúde de Luís do Lago que, com tanta autoridade, lhe prescrevera um remédio obscuro para amaciar o marido. No entanto, era com relutância que perdoava a si própria o facto de ter confiado um segredo íntimo a alguém totalmente estranho, assim como o de proceder diariamente a um ritual que o seu bom senso classificava de grotesco.

Todavia, à medida que o tempo passava, Maria do Carmo era tentada a pôr de lado a hipótese de coincidência. Nas raras vezes em que falhara a colocação do pó, parecera-lhe que o humor do marido piorara. Mas o seu raciocínio não a deixava mergulhar a fundo naquilo que considerava uma crendice. Era uma intelectual, um quadro superior, que diabo!... E ia vivendo sem conseguir destrinçar a meada de pensamentos contraditórios em que se atolara.

Durava esta paz aparente havia várias semanas, quando Maria do Carmo reparou que, apesar da diminuta quantidade consumida diariamente, o pó se ia gastando. E, contra tudo o que a sua inteligência lhe ditava, começou a sentir-se apreensiva. Olhava para a saqueta, esforçando-se por calcular para quanto tempo lhe daria. E tentava imaginar o que sucederia quando o pó acabasse.

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, uma outra transformação ia-se processando no seu âmago. Sem saber como nem porquê, deixara de se sentir atraída pelo marido. Às vezes, submetia-se às suas carícias com um ligeiro enfado. Agora, que o tinha na mão, achava a paixão dele um pouco opressiva. Quase que a aborrecia. E, com alguma ironia, concluía haver mais prazer na perseguição que na posse. Por outro lado, a simpatia por David convertera-se numa forte atracção. Todos os dias esperava que ele se oferecesse para a acompanhar ao almoço. E, quando assim não sucedia, sentia-se desiludida.

Sim, Maria do Carmo andava cada vez mais confusa. E era ela mesma o motivo da insegurança. Queria tudo menos complicar a vida. Mas a vida parecia complicar-se sozinha. As coisas à sua volta conspiravam contra ela. Sentia-se sem controlo sobre os seus próprios sentimentos. Por isso, levada pela imensa curiosidade que agora Luís do Lago lhe despertava, pôs de lado reticências, hesitações e dúvidas, e resolveu ir de novo falar com ele.

Desta vez foi sozinha. Marcou a consulta pelo telefone e, no dia indicado, arrumou o carro na viela onde Luís do Lago exercia. Tocou à campainha com desenvoltura. Agora, tudo lhe parecia natural. Já nada lhe transmitia aquela sensação de decrepitude que tanto a impressionara.

Mais uma vez, aguardou na sala de espera acompanhada unicamente pela recepcionista. Os produtos das prateleiras eram-lhe agora familiares, nomeadamente os saquinhos de pó de cores vivas, cada um com o seu propósito. Quando Luís do Lago abriu a porta, foi quase como reencontrar um velho amigo.

- Então? Como estão as coisas com o teu marido? – perguntou o bruxo, mal se sentaram na saleta das consultas.

- Oh, estão melhores... Eu é que não me sinto bem...

- Ah sim?...

- É... As coisas estão a ficar fora de controlo...

- Já te disse que tudo o que nos rodeia é...

- ...um reflexo de nós próprios!... Sim, não mais me esqueci dessa frase... (Se ele é um autêntico adivinho, deve conseguir ler na minha alma!...)

Luís do Lago agarrou no baralho de Tarot e disse:

- Descruza as pernas e parte com a mão esquerda! Vou ver como é que tu estás...

Como que hipnotizada, Maria do Carmo seguiu com o olhar aquelas manápulas, enquanto dispunham as cartas no costumeiro círculo de montículos. Apesar de ter várias perguntas na ponta da língua, não se atrevia a interrompê-lo. Luís do Lago fitou demoradamente as figuras. Quando falou, fê-lo mais baixo que o habitual:

- Olha! Olha!... Hoje, tu ainda me vais telefonar!...

E ergueu um olhar perfurante para Maria do Carmo, que se sentiu estremecer.

- Telefonar?... Hoje?... (Impossível!... Desta vez, ele está a meter água...).

Luís do Lago pegou num pequeno pedaço de papel, onde rabiscou um número, que depois estendeu a Maria do Carmo.

- Está aqui o meu número de telemóvel. Se precisares de alguma coisa...

Maria do Carmo guardou o papel no bolso sem ligar importância:

- E como é que eu estou?...

- Isso agora não interessa... Tu precisas é de ler este livro... – e Luís do Lago agarrou noutro pedaço de papel onde escreveu “Tudo pode ser conseguido”, por Joel Barbott, edições Maravilha.

Estendeu o segundo papel a Maria do Carmo e levantou-se dando a consulta por terminada. Maria do Carmo hesitou mas acabou por se erguer também. Mais uma vez não esperava um final tão inopinado.

Ao passar pelo corredor rumo à porta, entreviu por um instante umas pernas na sala de espera. Eram pernas de homem. Incrível! Ela pensava que só as mulheres é que recorriam a videntes e cartomantes... E esta reflexão fê-la sentir-se menos ridícula por se ter metido naquelas andanças.

Saiu para a rua. Já em pleno IC19 ocorreu-lhe que esta segunda entrevista com Luís do Lago não lhe tinha trazido quaisquer orientações. Uma certa frustração arrepanhava-a. Desta vez, o bruxo não lhe fizera uma única revelação nem lhe dera nenhuma mezinha. Limitara-se a atirar uma bola para o ar e a mandá-la ler um livro!... Enfim! Talvez, como toda a gente, ele tivesse dias melhores e piores, com mais ou menos inspiração... E, ainda por cima, o pó estava no fim e ela não chegara a perguntar se seria necessário adquirir outro saco para manter o marido nos carris.

Nessa noite, o filho de Maria do Carmo recusou-se a jantar. Pouco depois, torcia-se com cólicas abdominais. Como as dores não abrandassem, Maria do Carmo e José António levaram-no à urgência hospitalar. E o diagnóstico foi taxativo. Apendicite aguda.

Enquanto o filho estava na sala de operações, Maria do Carmo caminhava, para cá e para lá, ao longo de um corredor próximo do bloco operatório, escutando o ruído que os saltos dos seus sapatos faziam no pavimento. Não conseguia estar quieta. Uma sensação de angústia subjugava-a. E repetia mentalmente – o Vasco vai ficar bom! O Vasco vai ficar bom!...

Olhou para o marido, que aguardava pacientemente, sentado num banco do corredor, e percebeu que já não tinha nada a ver com aquele homem. Num gesto maquinal, meteu a mão ao bolso e encontrou os dois papéis entregues por Luís do Lago. Graças a Deus! Com o ar mais natural do mundo, disse ao marido:

- Vou à procura de uma casa de banho.

Em vez disso, encontrou rapidamente a saída do hospital, tirou o telemóvel da carteira e ligou para o número escrito num dos papéis:

- Está?

- Estou sim, filha!...

- É Maria do Carmo Carvalho...

- Eu sei...

O tom de excessiva familiaridade desagradou a Maria do Carmo.

- O meu filho adoeceu. Está, neste momento, a ser operado.

- Também sei disso, filha!...

- Oh! Faz com que corra tudo bem com o meu filho, por favor...

- Fica tranquila. Vou ver o que posso fazer... – respondeu Luís do Lago. E desligou.

Ao entrar de novo no hospital, Maria do Carmo reparou que o relógio de parede marcava meia-noite.

Uma grande serenidade invadiu-lhe o coração. Luís do Lago era um bruxo autêntico. Isso era uma verdade insofismável.

O filho de Maria do Carmo regressou a casa ao fim de três dias. Recuperara muitíssimo bem. Uma semana depois da crise, estava como novo. Nunca se vira recobro tão rápido e completo. O médico estava admirado. Até a cicatriz, tão recente, se esbatia rapidamente. Parecia operado por mãos de fada.

Maria do Carmo estava rendida. Rendida e grata. Nem por uma fracção de segundo duvidava de que a extraordinária recuperação do filho se devia unicamente à intervenção de Luís do Lago.

Que fantástico poder o daquele homem de aspecto abrutalhado! E que benesse magnífica tê-lo por aliado! Ainda por cima, ao contrário do que seria expectável, não era nenhum chupista. Aliás, com tanto poder, Luís do Lago só não enriqueceria se o não quisesse... Sim, não havia dúvidas de que era uma pessoa excepcional.

Mas a rendição de Maria do Carmo não se limitava ao reconhecimento das qualidades de Luís do Lago. Ele fizera-a pensar. Recordava-se da estranha frase do bruxo “Tudo o que nos rodeia é um reflexo de nós próprios” cujo significado só agora atingia. Sim, havia muito tempo que albergava a incerteza dentro de si. Não o confessara a ninguém, nem mesmo a Luís do Lago. Seria que ela, já antes da crise, deixara de amar o marido?... E que o mau humor deste não fora mais que uma reacção inconsciente a esse fenómeno?... As coisas dependiam da maneira como as víamos. Afinal, agora que o facto lhe era indiferente, o pó acabara e o marido permanecia manso...

E David? Sentia tanto prazer na sua companhia!... E era tão atraente e delicado!... Quando entrava no gabinete cinzento onde ela trabalhava, parecia emitir luz própria. Ignorava se o amava ou não. Nem lhe apetecia aprofundar o fenómeno. E o facto de serem ambos casados, potenciais protagonistas de um duplo adultério, afigurava-se-lhe irrelevante. A única coisa que sabia é que sentia por ele uma atracção irresistível. Quando pensava no assunto, estranhava ter demorado tanto a perceber isso. Eram colegas havia anos. E ela sempre o considerara desinteressante. Agora, porém, o dia só começava verdadeiramente quando o via. E desejava-o! Oh, meu Deus, como o desejava!

A manhã decorria na espera da hora do almoço. Ele trabalhava noutro gabinete. Por isso, nunca seria por acaso que se juntariam. Tinha de haver intenção, apetência. Mas ele raramente falhava. Às vezes vinha mais alguém a reboque, o que, para Maria do Carmo, retirava algum encanto à refeição. Falavam de tudo. Maria do Carmo achava-o detentor de um humor impagável. Com ele, o tempo voava. Quando, no final do almoço, David dizia que era tempo de regressar, olhava invariavelmente para o relógio, admirada.

Maria do Carmo sentia-se cheia de esperança. Não lhe passava pela cabeça deixar o marido, em relação a quem se sentia infinitamente distante. Muito menos causar infelicidade a alguém que nem sequer conhecia. Nem ela nem David se referiam aos respectivos cônjuges. Não obstante, acreditava que, de alguma maneira imprevisível, o destino asseguraria a sua felicidade.

Mas o cerne da questão escapava-lhe. No fundo, David tratava-a como uma simples colega. Nunca lhe dera a entender pretender algo mais que companhia para almoçar. Às vezes, Maria do Carmo tinha a impressão que ele ia esboçar um gesto, dizer uma palavra... Mas isso não chegava a acontecer.

Seria que ele não percebia o que se passava com ela? Não notaria a paixão que lhe ardia no peito? Claro que não poderia ser ela a declarar-se. Não lhe ficaria bem. O primeiro passo competia ao homem. Que fazer? Oh, meu Deus! Que fazer?...

Em certa ocasião, abriu-se com Joana:

- Luís do Lago resolveu-me um problema mas criou-me outro...

- Sim?

- Agora dou comigo a pensar que, com a ajuda dele, posso conseguir tudo o que quiser... E há uma coisa que eu quero muito. Mas não tenho descaramento para ir lá pedir-lhe para fazer alguém apaixonar-se por mim...

- Ele não te recomendou um livro?...

- Recomendou.

- E já o leste?

- Ainda não.

- Então lê-o. É um livro fantástico. No fundo, todos nós podemos ser como Luís do Lago.

- Queres dizer... ?!

- Lê-o! E depois fala comigo...


Maria do Carmo comprou o livro. E começou a lê-lo. E, à medida que a leitura avançava, o seu cérebro amadurecido absorvia todos os ensinamentos. Sabia agora donde vinha o poder de Luís do Lago. E o tremendo sucesso dos empreendimentos de Joana. Ela também podia usufruir de tudo isso... O livro era quase uma Bíblia.

Começou a andar sempre com ele na carteira, a fim de o consultar, se necessário. Sabia que a leitura a distanciava cada vez mais da sua antiga maneira de ver o mundo. Sentia-se nas nuvens. Mas... conseguiria fazer David apaixonar-se por ela? Decerto, seria um teste decisivo para os ensinamentos adquiridos.

Tinha de acreditar! Acreditar que era capaz de despertar no peito dele a mesma paixão que a consumia. Porque não ser ela a dar o primeiro passo? E, incapaz de se conter, decidiu abrir o jogo. Tinha de o fazer. Já esperara tempo de mais.

Certa manhã, sentada à secretária, preparava mentalmente as palavras que iria proferir. Palavras decisivas.

- Não fiz de propósito, mas estou loucamente apaixonada por ti!...

Não! Era demasiado patético. Talvez:

- Quero dormir contigo, não penso noutra coisa!...

Também não. Demasiado carnal.

Ensaiou dezenas de frases. Nenhuma a satisfazia. Paciência! Seguiria a inspiração do momento! Determinada, levantou-se e encaminhou-se para o gabinete onde David trabalhava. O colega com quem ele o compartilhava saía muito. Com sorte, talvez David estivesse sozinho. Chegada à porta, antes de se mostrar, espreitou.

David estava recostado na cadeira, com as costas bem apoiadas e uma expressão concentrada. Nas mãos segurava um livro. Maria do Carmo teve um baque. O livro era “Tudo pode ser conseguido” de Joel Barbott, edições Maravilha.

Em vez de se mostrar, voou de volta até ao seu lugar. Agarrou no casaco pendurado no cabide e revistou-lhe os bolsos. Nada. Com as mãos percorreu o próprio corpo, freneticamente, à procura de algo que não sabia bem o que era. Nada.

De repente, reparou na carteira. A carteira que usava todos os dias. Abriu-a, inverteu-a e deixou que todo o seu conteúdo caísse sobre a secretária. Sacudiu-a com força e susteve a respiração. Do seu interior escorria um pó muito fino, cor-de-rosa vivo, que ia colorindo suavemente o tampo cinzento da secretária.

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