loading gif
Loading...

Raízes - Fernando Cardoso


Testamento de Consciência

2010-03-03 00:00:00

Testamento de Consciência

Zé Parente está simultaneamente atemorizado e arrependido. Experimenta um estado de alma mescla daqueles dois sentimentos. Deitado na sua imponente cama de ferro, olha em redor, como se andasse à procura de algum objecto. Mas não. Zé Parente olha sem ver…, o que ele procura não está no quarto, está dentro de si, no seu consciente em imagens já distantes. Ele procura, agora, arrancá-las ao passado para mais facilmente aquilatar até que ponto fora desumano, até que ponto se esquecera, ao longo da sua vida, da máxima cristã: «Não faças aos outros, o que não queres que te façam a ti».

Sentado, em frente, numa cadeira de braços, perna cruzada, está o Notário, baixo, bem nutrido, óculos quase na ponta do nariz, caneta baloiçando entre o polegar e o indicador da mão direita, nos momentos em que Zé Parente nada declara. Mas sempre atento, como cão perdigueiro, ao menor balbuciar do testador. E, então, já a caneta corre nervosa e lesta por folhas numeradas e rubricadas de um livro de capa preta.

O Notário já sabia que cada enunciação de Zé Parente equivalia a uma sua liberalidade, a deixar bem expressa no seu testamento. Por seu turno, Zé Parente sabia que aquela enfermidade era a última. Os dias que lhe restavam talvez fossem menos que os dedos das mãos.

O médico fora incompassível, mas sincero: a sua idade não lhe permitiria resistir àquela doença. Não havia que ter ilusões. Estas também já eram escassas e os seus desejos resumiam-se a pouco mais que a comer e a dormir. E quanto a dormir, iria ter em breve um longo sono. Porém, o que o preocupava era se esse sono não viesse a ser tranquilo e reparador, pois receava tremendamente o Juízo Final.

Por isso, estava ali o Notário. Zé Parente queria, naquele seu derradeiro acto, sanar tantos outros que pesavam grandemente na sua consciência. No seu cérebro sucedem-se, agora, todos aqueles actos reprováveis que paulatinamente ganham vida. A nebulosidade inicial com que os via, vai-se dissipando, os contornos tornam-se mais nítidos, surgem os pormenores. Era como se estivesse mesmo a ver o Ti Jaquim. Aos anos que foi! Mas a imagem retida agora, na sua mente, estava clara e precisa. Fora num Domingo à tarde. Vendera-lhe o animal já doente e jurara, depois, a pés juntos, que não sabia.

- Ponha 50 euros a favor de Manuel Joaquim da Ribeira ? diz ele para o Notário, em voz baixa, mas com os olhos sorridentes, felizes, como se saboreasse a agradável sensação de regressar de um confessionário.

Depois, surge-lhe a imagem da Marquinhas, do lugar do Mato. Passara-lhe uma nota falsa. Viu-a chorar mais tarde, aflita, porque ninguém lhe recebia aquela nota e já não se lembrava de quem lha tinha passado.

- Ponha, Notário, ponha vinte euros. O dinheiro de agora não vale o desse tempo, pensou consigo.

Na mente, surge-lhe, entretanto, a figura da viúva do Pereira. Ela não sabia que Zé Parente era devedor do seu «home». Este, morrera sem lhe ter dito, mas, coitada da viúva, mais a mais com duas crianças…

- Ponha aí 500 euros em nome da viúva Maria Pereira, ponha Doutor…

E sorria. Já não estava atemorizado, mas tão somente imbuído num pretenso arrependimento. Sentia uma mutação extraordinária que lhe proporcionava um bem-estar jamais experimentado.

Muitas outras figuras foram surgindo. Zé Parente tinha sido, na verdade, um vigarista talentoso. Enganara meia aldeia e ninguém o considerava como tal. Agora, para aqueles inúmeros casos, dava a mesma solução: uma ordem de pagamento. Pagamento tardio, mas compensador e voluntário.

A sua herança, seria, assim, distribuída. Já não recearia o Juízo de Deus, o Julgamento Final. Estava feliz. Mas, de repente, os olhos deixam de sorrir, a testa carrega-se de rugas, o aspecto torna-se mais pesado: surgira-lhe a figura do Silva, do vizinho Silva. Como compensar o Silva? Não lhe pediu dinheiro, não o tinha burlado em qualquer negócio. Mas aquele boato, de que à noite, na Casa Verde (que o Silva tinha para arrendar), se ouviam ruídos estranhos, passos e gargalhadas, fora lançado por ele. A que chega a inveja ? reconhece agora.

Ele não podia ver o vizinho na vida melhor do que ele. Esta ideia de competição tinha uma origem remota: nascera nos bancos da escola. O Silva era o melhor da turma, dizia a professora. E isso fazia-o sofrer. Na aldeia só se falava no Silva. Já homens, o Silva continuava a demonstrar maior argúcia. Zé Parente fazia-se amigo dele, mas detestava-o, invejava-o. Era parreira demasiado alta que não lhe deixava ver o Sol. E Parente não se conformava em estar sempre na sombra.

Não se limitara a lançar aquele boato. Um dia, pela calada da noite, para melhor persuadir, fora, ele mesmo, enrolado num grande lençol branco, amedrontar os primeiros inquilinos da Casa Verde. Desde aí, ninguém mais quis ir viver para aquela casa. O povo é demasiadamente crédulo. O próprio Silva conformou-se com a situação de ver a Casa Verde, que lhe tinha custado suor e lágrimas, desabitada.

Só o Zé Parente sabia que tudo era boato. Boato que brotara da sua boca e da sua insólita acção. Agora, o problema era saber como compensar o Silva. Quantos anos esteve e estará sem receber rendas? Qual a importância a atribuir a cada mês? Se não fosse o boato estaria a casa sempre arrendada? Hesita, por longo tempo, na quantia a deixar ao Silva. Pensa como foi terrivelmente invejoso e decide-se:

- Notário, deixo a minha casa, sim, a minha casa, e o remanescente ao Manuel da Silva!

O médico não se enganara. Aquela foi a sua última enfermidade. Mas Zé Parente revelara-se um devedor honesto ao morrer. Vencera todas as maldades e mesquinharias. Morreu feliz, com um sorriso indescritível.


Fernando Cardoso

Comentários


Ainda não existem comentários para este questionário.

Mais raízes

Voltar

Faça o login na sua conta do Portal