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Raízes - Ana Cristina Silva


«A mãe de Rimbaud»
Excerto

2022-01-21 12:01:29

 

A mãe de Rimbaud

As palavras sempre revolveram a cabeça de Arthur como bichos inquietos. Antes de serem palavras, foram gritos na boca dos seus pais, Vitalie e Fréderic Rimbaud. A mãe gritava mais do que o pai. Ele era mais cauteloso, talvez por chegar da guerra e ansiar por alguns dias de descanso. As frases da mãe tinham arestas duras. Sempre que abria a boca, a fúria adensava-se. Os humores de Madame Rimbaud, em permanente mudança, faziam imaginar nuvens carregadas sobre o tecto da casa. As discussões agravavam-se até que o pai regressava ao seu regimento. Fréderic apenas ouvia superficialmente as reclamações de Vitalie. Ela resmungava de manhã à noite por causa do abandono do marido e da falta de dinheiro. Os gritos da mãe não tinham uma ordem previsível, podiam ser desencadeados sob qualquer pretexto, por isso o pai preferia enfrentar as saraivadas de balas no campo de batalha. Quando o marido voltava a partir, a mãe despedia-se com um olhar perdido, reduzida de novo à solidão e com mais um filho na barriga. Arhtur sabia que a mãe gostaria de pedir ao pai a sua compreensão, o seu apoio, o seu perdão, o seu amor, mas o que ela lançava para o ar, no momento da despedida, era um dorido silêncio.


Sempre que Fréderic partia com o seu regimento, eu era possuída por visões sangrentas em que o meu marido morria no campo de batalha. Eram imagens de pura vingança. Nos meus devaneios, imaginava o meu marido reduzido a um corpo esventrado pela espada de um inimigo, via-o decapitado por uma explosão de artilharia, fantasiava com uma morte dolorosa em que ele, depois de amputado, sucumbiria de gangrena num hospital de campanha. Pensar na sua morte era o meu único consolo. Os meus pensamentos celebravam a carnificina. Esta sofreguidão do ódio, que nascia dentro de mim contra todos os princípios de caridade cristã, era a minha força. Só assim conseguia ter presença de espírito para me despedir do meu marido. E de seguida voltava os pensamentos para as obrigações com os filhos, mesmo desfalecendo de ressentimento.

A ordem natural da vida era o homem partir e a mulher ficar. Devia submeter-me à natureza das coisas e não alimentar a vingança. Muitas vezes, depois de Fréderic viajar, benzia-me para que Deus percebesse que fora invadida por ideias rancorosas contra a minha vontade. O Senhor era infinitamente bom e misericordioso, mesmo assim punia-me.

Fréderic regressou ao exército, para nunca mais voltar a casa, numa manhã deslumbrante de Primavera. Por todo o lado, em Charleville, rangiam as badaladas ásperas de velhas igrejas, o som enferrujado espalhava-se pelas estreitas ruelas e os pássaros disparavam pelos céus, talvez impelidos pelos sinos. Por contraste a esse ambiente de estridência, o meu coração afundava-se em silêncio, enquanto via o meu marido subir para a carruagem. Como sempre as despedidas dele foram frias, um breve acenar de cabeça ao mesmo tempo que proferiu simplesmente: “Madame!” Limitei-me a corresponder àquele gesto, enquanto as coisas mais cruéis do mundo, ideias rancorosas, ciumentas e infinitamente vingativas deslizavam na minha cabeça. Apesar disso, ao ver a carruagem desaparecer numa curva da estrada, escorriam-me grossas lágrimas pelas faces, redondas e com uma cintilação de gota de orvalho. Depois, lentamente, o olhar extinguiu-se dos meus olhos que foi caindo muito devagar, como no fundo de um grande poço, sem qualquer esperança de voltar à superfície.

Para trás tinham ficado duas semanas de discussões para testemunhar que o amor também destrói. No dia em que Fréderic chegou, eu estava a amassar pão na cozinha, vigiando ao mesmo tempo a minha filha mais nova, a bebé Isabelle. Como sempre, no regresso do meu marido deixava-me surpreender por um perfume, um cheiro que conhecia bem, mas a que não era capaz de dar nome e que convocava em mim a recordação de um prado cheio de papoilas e de uma paixão inocente. Abraçava-o e esse primeiro dia decorria de acordo com o que sempre imaginava para um casamento feliz. Os meus filhos mais velhos, Fréderic e Arthur, respeitosos, falavam ao pai dos seus progressos na escola, o caldo do jantar era melhorado com pedaços de carne. No meio de coisas comuns, entre os comportamentos mais triviais, parecia ocorrer um milagre: Frédric sorria para os filhos e erguia no ar a nossa pequena Vitalie. Depois chegava a noite. As nossas mãos tocavam-se, um súbito ardor irrompia. A minha pele era atravessada por estranhas vibrações. No quarto misturavam-se sons indistintos, como os de uma festa que decorresse muito perto. Contra os mandamentos de Deus, era vencida pela fruição de um inesperado despojamento. Alma, nervos e músculos abandonavam o meu corpo e eu transformava-me numa acrobata que se lança no vazio entre dois trapézios. Era como se até o amor mais real fosse feito de um sonho.

“Como a paixão é degradante!” dizia para mim própria, mal o meu marido adormecia. O Senhor apenas permitia que cedesse a favores benévolos e mornos. O amor de Cristo vinha da dor e não do prazer! No entanto, apesar dos meus desejos impuros, também eu deslizava rapidamente para o sono.

Bastavam dois dias para que tudo mudasse. Os meus sentimentos deslocavam-se para um sítio diferente. Talvez por Fréderic me indicar a data da próxima partida, e a fúria irromper dentro de mim como uma dessas chamas que percorrem as fendas da terra. Eu possuía uma aguda noção de que as palavras amorosas eram para quem tinha um tempo ilimitado. A mim nunca me foi concedida a oportunidade das ideias amadurecerem. O meu marido partiria em breve e eu não dispunha de outra ocasião para lhe dizer certas coisas. Já as repetira muitas vezes, mas, quase sempre dirigia as minhas palavras a espectros a que a imaginação moldara para as minhas noites de solidão.

Excepcionalmente, Frédric estava presente, por isso podia recriminá-lo por me deixar sozinha, por gastar quase todo o dinheiro no jogo, por me fazer um filho cada vez que vinha a casa sem se preocupar com a sua educação. Numa atitude ilógica, inexplicável e destrutiva, só desejava aniquilar a anterior intimidade. Inesperadas revelações de ódio saíam de dentro dos meus gritos. Fréderic mandava-me calar. Em vez de contrariar os meus motivos com argumentos, emitia uma ordem seca e marcial que me exasperava ainda mais. A gritaria prosseguia como se, na minha boca, as palavras não tivessem fim. Eu e o meu marido parecíamos dois relógios a que bastava dar corda para retinirem furiosos.

Durante as discussões, predominavam em mim diversas personagens, que alternavam entre si. Albergava a esposa ressentida que não partilhava nenhum dos sentimentos com a melancólica sonhadora do verdadeiro amor. Cada vez que crivava o meu marido de injúrias, estava a suplicar-lhe que não me deixasse só, mas ele era indiferente aos meus apelos. Parecia surdo, não ao só em relação ao som das minhas palavras, mas sobretudo em relação ao ruído das mágoas. Por isso, todo o meu corpo tremia sob o efeito do rancor, até as minhas pernas magras ondulavam com dificuldades em se apoiar no chão. No fim, ele abandonava o aposento e eu ficava sozinha. Em breve voltaria a ser a jovem mãe solitária que cuidava dos seus filhos e ao mesmo tempo uma mulher amargurada, agarrando-se ao dever para sobreviver no dia-a-dia.

O que crescia no espírito de Fréderic, durante o tempo em que permanecia em casa, era uma abundância de decisões de afastamento que culminavam na determinação de nunca mais voltar. Ele proferira várias vezes essa ameaça, mas eu nunca o levara a sério. Não sabia, evidentemente, que a resolução de partir de vez estava tomada quando, nessa manhã, o meu marido subiu para a carruagem. Enquanto o cocheiro arrumava a bagagem, em vez de olhar para mim, ele pôs-se a observar a rua. O velho largo, onde se situava a casa da nossa família, tinha um aspecto decrépito e enevoado. Talvez a vizinhança lhe parecesse estranha e sinistra. As mulheres debruçavam-se das janelas, perscrutando a rua com uma fixidez de olhar voraz. Eu adivinhava a vida que se desenrolava por detrás daqueles cortinados espessos e, sabendo que seria naquela cidade que os meus filhos iriam crescer, tive vontade de chorar. No último instante, antes da carruagem se fazer ao caminho, Fréderic lembrou-se de acenar de novo.

O ressentimento tornava-se inútil com a partida do meu marido. As paredes da casa não oscilavam com a minha fúria e não saía ninguém do sótão para me consolar. Reconhecia a minha face na silhueta do espelho da sala. Era mesmo eu, ali parada no meio do aposento, com um marido ausente por tempo indeterminado e quatro filhos para alimentar e educar. Eu era eu e estava absolutamente sozinha, por isso odiava os reflexos que revelavam as sombras do meu rosto. Era impossível a existência de outro lugar para mim, um sítio que não tivesse nada a ver com filhos pequenos, sopa para o jantar ou negócios de venda dos produtos da quinta de Roche que herdara. Por isso, talvez para me convencer, enquanto olhava em volta, repetia para mim própria: “É suficiente estar nesta casa com os meus filhos, livre da guerra. É suficiente dar-lhes de comer, deitá-los e, depois de dormir, ter de novo o trabalho de cuidar deles. É suficiente que os candeeiros da rua projectem sombras amarelas nas árvores para eu dormir tranquila.” Estas palavras eram a minha oração e sabia que tudo voltaria em breve ao normal. Para tal, bastaria pôr de lado todos os sonhos. Mas antes, deitava-me na cama e chorava longamente, sem ruído, soluçando como se respirasse.


Ana Cristina Silva
«A mãe de Rimbaud»
Excerto.

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