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Raízes - Lídia Jorge


Balada Para Javalis

2013-04-29 00:00:00

Balada Para Javalis

BALADA PARA JAVALIS


Lembram-se do livro do Thomas Friedman, o célebre cronista do The New York Times, publicado entre nós aqui há uns três anos, quando já havia feito um longo caminho, e já havia sido suficientemente lido e suficientemente comentado para não o tomarmos a sério?

Convém lembrar. O livro chamava-se O Mundo é Plano e o seu autor explicava que tinha tido um sonho durante uma viagem. O sonho de que a Terra não era mais redonda mas plana, ao contrário da configuração revelada por Cristóvão Colombo, e ele, o cronista, um novo Colombo, mostrava como a revolução tecnológica havia deixado a Terra em estado de planisfério. Todas as regiões da Terra ao alcance do desenvolvimento, todas as regiões da Terra ao alcance do progresso, todas elas equidistantes dos grandes recursos tecnológicos. Bastaria capacidade de empreender, vontade de criar e zás! O mundo ligado a todo o mundo. Pena que ainda se tivesse de andar de avião, pena que ainda houvesse distâncias, quando na verdade já não havia distâncias. Bastaria vontade, iniciativa, golpe de olho para o negócio e zás! O mundo numa casa só, a vida numa casa só, a língua uma língua só, os aeroportos um aeroporto só. Eu adoraria a ideia. Adoraria se o seu autor tivesse ficado por onde deveria ter ficado – pela invenção duma bela metáfora sobre a nova realidade portátil que elimina a noção de raiz. Mas uma vez levado a sério e tomado à letra, o seu recado é um perigo. O plano da cultura para que aponta esse tipo de argumentação, desenvolvida a partir do fundo empresarial, mostra como O Mundo é Plano representa a defesa duma ideia contemplativa pueril, própria de O Principezinho, cruzada com o voluntarismo de um Mein Kampf doméstico. Arriscado.

Só que não se corre mais esse risco.

Agora que o tempo passou, e que Thomas Friedman foi obrigado a escrever sobre o grande baralho de cartas desmoronado com a crise, agora podemos concluir que tudo isto vai um pouco mais devagar do que o previsto, que não basta só querer para poder, só imaginar para realizar, e que à medida que uma parte da Terra se faz plana, a outra eriça-se, descontrola-se, sai dos eixos, indomável, cria neve onde não se espera, derrete quando menos se julga, faz florestas onde não imaginávamos. Enfim, tanta gente sentada nos escritórios a tentar achatar o Mundo, a torná-lo igual e semelhante, igualmente desenvolvido, igualmente produtor e rico, e a diferenciação a pregar partidas, atrasos, as surpresas a surgirem de todo o lado e feitio. E eu, que sou pessoa de raízes, embora transportando-as ao longo dos espaços por onde me auto-transporto, vou contar um caso curioso. Vou falar duma pequena surpresa. Pequeníssima, inofensiva surpresa que me faz rir, e me dá vontade de escrever sobre o particular, o próximo e o minúsculo, na certeza de que ele sempre tem alguma coisa do grande, do distante e do maiúsculo. Que me desculpe o novo Cristóvão Colombo.

Comecemos pelo princípio. Cliquem o Google e escrevam Boliqueime. Se o fizerem, encontrarão a indicação de que se trata duma terrinha do Sul, cinco mil habitantes, uma terra entalada entre a Serra e o Mar, descrita como tendo pouca indústria, algum comércio, uma turismo de acolhimento já razoável e uma boa gastronomia ainda que demasiado parca. Vegetação própria do barrocal, figueiras, alfarrobeiras, romãzeiras, sobretudo as lindíssimas amendoeiras que ficam em flor entre Janeiro e Fevereiro colorindo as colinas de um branco cor-de-rosa de sonho. Não admira que desde há trinta anos as casas de camponeses e pastores, à medida que as actividades tradicionais se vão desmantelando, tenham sido transformadas em belas mansões de férias e recintos de lazer. Os campos cultivados deram lugares a campos de relva, os antigos quintais deram lugar a jardins preciosos, as árvores de fruto, umas foram derrubadas para serem substituídas por palmeiras das Canárias, outras passaram a enfeitar a paisagem como adorno. Se passarem com o rato pelo Google Mapa, poderão ver o resultado dessa transformação. A Via do Infante rasga a freguesia ao meio dando-lhe velocidade. O aeroporto dá-lhe aviões e distância. A comunidade local dispõe de equipamentos sociais modernos, de vigilância policial, de ligação aos serviços médicos, escolas, jardins de infância. Em cada casa, os apetrechos electrónicos necessários. Local de recolhimento aprazível, aqui passaram a viver sazonalmente altos quadros, futebolistas, artistas nacionais e estrangeiros, escritores e até políticos africanos se refugiam por aqui, em casas isoladas por altos muros. Era de esperar.

Mas o que não era de esperar aconteceu também. De repente, a terra começou à procura de um outro equilíbrio, inesperado. Muito curioso. Como durante o Verão ninguém recolhe os figos, as alfarrobas e as amêndoas, permanecendo na terra de estação a estação, a partir de Agosto, os ratos encontram debaixo das copas das árvores a mesa posta, e o campo transforma-se para essa espécie, num paraíso perfeito. Tocas e valados ficam cheios da sua recolha. Debaixo do chão, há celeiros gigantescos que parecem humanos. Ratazanas de tamanhos descomunais multiplicam-se a velocidades bíblicas. Exemplares gorduchos como pandas rebolam-se pela paisagem, desafiando os gatos mais potentes. Então, tamanha caça atraiu os mochos, as corujas, e sobretudo o belo bufo-real das árvores altas.

O Bufo? Na zona, ninguém tinha ouvido falar do bufo, essa grandiosa ave de rapina cuja cabeça que é maior do que uma meloa e as asas abertas apresentam mais de metro e meio de envergadura. Se morar por aqui, verá como os gritos dos bufos reais atravessam a noite, visitam-no, caçam no seu jardim e no seu quintal. Se lhe acontecer não enxote, não vale a pena. Ele veio para ficar. Na zona também se multiplicam os láparos e os bufos adoram-nos para jantar. Depois de ratos, nada melhor que uns coelhos para satisfazer o apetite do bufo. Mas há mais. A raposa, agora, não encontra barreiras ao seu passeio. Ao cair da noite, também ela vem à caça. Não vinha, mas agora vem. Desceu das serras e invadiu a zona que antes lhe era vedada pelo labor humano. Não há labor, há ocupação intelectual da zona. Muito diferente. Ora ocupação intelectual, ocupação tecnológica, tornou-se igual a raposa no quintal.

Mais do que isso. Se um dia estiverem a tomar o pequeno almoço no terraço, e levantarem os olhos do chá e da torrada, poderão ver o que vos parecerá um cão estranho. Um cão de traseiro descido, cachaço empinado, orelhas caídas para a frente. Um cão? Um porco? Não, um porco não foge assim, não arremete contra as flores do jardim daquele modo. Aproxime-se. Verá que não é nem cão nem porco. É javali.

O javali antes ficava a trinta quilómetros para Norte, as pessoas da zona nasciam e morriam e só viam o javali no Jardim Zoológico de Lisboa. Agora têm o animal a visitá-lo, a comer-lhe as laranjas, a fossar os bolbos dos seus ranúnculos, a deixar o excremento no meio dos seus vasos de porcelana. Como proceder? O javali não se mete com os animais humanos, mas mesmo assim não é muito próprio você dirigir-se à sua piscina e encontrar o animal de dentes à mostra a rir para si, fossando a sua relva. Ou então poderá gostar, poderá apreciar a invasão dos novos bichos. Nada mau. Não estava previsto. Mas acontece.

E também poderá acontecer que daqui por uns tempos, daquelas encruzilhadas onde antigamente as bruxas faziam os seus fadários, se levantem lobisomens preparados para rondarem as novas pistas onde, em breve, irão aterrar os aviões particulares a jacto.

Isto é, tecnologicamente, o Mundo é plano, mas a Terra é redonda, e a sua superfície enruga-se mesmo ao lado da nossa morada.

Lídia Jorge

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