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Raízes - Ana Margarida de Carvalho


Póstumos nascimentos

2015-01-05 00:00:00

Só pergunta quem ama, só indaga quem anseia, só quer saber quem deseja. Mas eu tenho a aflição da bruma, renego a limpidez, o sol que já nasceu, os outros que me ouvem com os olhos. Este barco é um cemitério de corpos vivos. E num barco à deriva, todos se sentem matéria pesada, a maldição física da aceleração em queda livre, como a estúpida maçã. E, no entanto, todos eles me parecem tão ocos, de ossos aguçados a quererem romper a pele, que quase poderiam flutuar neste mar, que já tudo vai caroço de um fruto raivosamente tragado, chupado, sorvido de todos os sucos. É isso. Somos um caixote de caroços, lançados fora, náufragos dos nossos próprios corpos. E o mar, mesmo que não fertilize, está com uma disposição caridosa de acolher. E alguns, fiados nesse doce rugir da indulgência, deixam-se ir, na alucinação de que aquele magma escuro seja menos áspero para os mesmos pés que atravessaram o deserto. E na caminhada dos elementos foram deixando para trás pesos e estorvos, doentes e velhos, crianças pequenas e cadáveres insupultos, roupas e mochilas, três mil dólares para o passador e quase toda a dignidade. Essa foi sendo largada aos pedaços, alguma dela ficou enterrada pelas tempestades de areia ou pela deslocação das dunas; outra dela, bem à vista, a tornear-se ao vento como uma bandeira sem protocolo, presa num arame farpado da Tunísia; outra despejou-se mesmo naquele Mediterrâneo escuro, e repousa lá nos seus infinitos, entre destroços de barcos fenícios e carcaças de animais extintos. Sempre foi estrada este mar, só pelos caprichos da gravidade e do sábio Arquimedes, não está ele calcetado de ossos de afogados, ruínas de civilizações, tábuas e restos de embarcações desfeitas – facilitava-nos a travessia. Agora, quantos dias neste tédio triste e silencioso, a atrair presságios, abandonados pelo homem do leme, onde está a ilha, a ilha, a ilha, onde só existe a água, a água, a água… Tanto se morre de sede no deserto como no mar. Quem me dera a vida em passo retrocedido, e não tivesse havido aquele instante fecundo, que faz passear outra existência pelas minhas veias amolecidas. Quem não ama, não pergunta. As contracções são como as ondas que embatem no casco, vão e vêm. Quem não anseia, não indaga. Um ser a mais neste barco sobrelotado de caroços de pêssego ocos. Sou eu a única que não vou vazia, dispo-me por dentro e engulo, como se fosse meu, o primeiro vagido. Quem não deseja, não quer saber. Entrego-o, tão pequeno e transparente, às ondas que o reclamam, atado com farrapos a roldanas de cortiça. Aconteça o que acontecer, numa ou noutra margem, toda gente vai para o céu que merece. 

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