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Raízes - Marta Teixeira Pinto


Renascer

2014-01-15 00:00:00

Serra olhou para o jovem poeta que acabara de lhe oferecer boleia e sentiu-se tentado a recusar. Estava cansado. Cansado de eventos literários, de concursos de poesia, de encontros de autores. Cansado de ser convidado para ler excertos das obras que o tinham consagrado e que, estranhamente, pouco ou nada falavam de si. Cansado de sorrir e de anuir com a cabeça para interlocutores que não ouvia. Cansado de tentar focar o olhar nos rostos dos que o interpelavam. Cansado de responder a perguntas sobre uma hipotética futura obra que, provavelmente, não chegaria a escrever. Cansado de escrever. Cansado de viver…

Aceitou a boleia com relutância e limitou-se a acenar com a cabeça e a sorrir sempre que o jovem comentava ou perguntava algo, sentindo uma pontada de culpa. O poeta era, sem dúvida, um jovem simpático, culto e, tinha de admitir, com muito talento. No entanto, não lhe apetecia conversar e as únicas palavras que lhe saíram da boca foram as indicações para a pensão onde morava. Não tinha paciência para discutir (nem com ele, nem com ninguém!) o percurso da literatura europeia desde a viragem do século. Estava esgotado. Esbanjara o último vestígio de energia desse serão quando lera o seu conto na cerimónia de entrega de prémios do concurso literário no qual ambos tinham participado, Serra enquanto autor convidado e o jovem poeta enquanto feliz premiado.

O carro parou finalmente diante da pensão onde vivia há mais de uma década e Serra não conseguiu evitar um suspiro de alívio. Sentiu novamente uma pontada de culpa mas, quando agradeceu e apertou a mão ao poeta, percebeu que este compreendia e respeitava o seu silêncio, tanto quanto alguém da sua idade e geração o podia compreender e respeitar.

A dona da pensão, uma senhora de meia-idade muito curiosa e sempre atenta à sua vida pública, esperava-o à entrada. Desejoso de se ver livre dela, sussurrou um cumprimento, apoiou-se pesadamente na sua bengala e apressou-se a percorrer o longo corredor atapetado que conduzia ao seu quarto. Persistente, ela seguiu-o, bombardeando-o com perguntas sobre a cerimónia, às quais, mesmo que quisesse, não teria conseguido responder àquela velocidade vertiginosa. Limitou-se a proferir uns quase inaudíveis, «sim, sim», «pois, pois», «claro, claro» e, chegado à sobejamente conhecida porta do quarto, despediu-se com rapidez, enfiou a chave na fechadura e rodou-a sem se atrever a olhar para trás.

Entrou no quarto, trancou rapidamente a porta e suspirou de alívio. Finalmente estava em casa, o único lar que conhecia naquele momento. Acendeu a luz, pendurou o antiquado chapéu de feltro, enfiou a bengala no bengaleiro raquítico e olhou em redor. Do lado direito estava a porta da casa de banho, que pouco mais era do que um nicho onde tinha dificuldade em mexer-se; do lado esquerdo estava a cama de solteiro com uma colcha desbotada, e uma mesa-de-cabeceira sobre a qual colocara a moldura de madeira escura com a única fotografia dos pais que conseguira resgatar; no chão jazia um tapete cujas cores originais nunca tivera o prazer de conhecer; e em frente, junto à enorme janela envidraçada com vista para a praça das traseiras, estava a secretária antiquíssima.

Por puro hábito, sentou-se à secretária. À sua frente, bem conservada e funcional, repousava a sua velha máquina de escrever Olivetti. Ao lado, uma resma de papel aguardava a sua inspiração. Também por hábito, colocou uma folha na máquina, enrolou-a à altura da fita e tateou o teclado com símbolos esbatidos. Os seus dedos doridos deslizaram sobre as teclas e sentiu uma nova energia, o formigueiro que habitualmente precedia os momentos de escrita intensa. Por instantes, pensou que ainda tinha histórias para contar; que, se deixasse os dedos moverem-se livremente sobre o teclado gasto, deles nasceria uma nova intriga, personagens interessantes e belas descrições; que, se deixasse os dedos dançarem mais uma vez sobre os símbolos esbatidos, deles nasceria o livro pelo qual lhe tinham perguntado o serão inteiro. Por instantes, pensou que se pudesse esquecer a exaustão do corpo idoso e ignorar o cansaço da alma sofrida, faria nascer mais uma história, sob a forma de letras negras sobre papel branco. No entanto, passados esses breves instantes de esperança nos quais o seu coração batera de antecipação e a sua cabeça deixara de pesar-lhe sobre os ombros, nada aconteceu. Nada aconteceu.

Dobrou os dedos nodosos e suspirou. Por muito que lhe doessem as mãos, não era por isso que não escrevia. Por muito que lhe faltasse a vista, não era por isso que não escrevia. Não precisava de olhos nem de mãos jovens para manobrar a sua velha máquina de escrever. Do que precisava era da sua chama inspiradora, da musa que há muito não o visitava, da força interior que ao longo dos anos lhe permitira passar para o papel as aventuras que gostaria de ter experimentado, os países exóticos que gostaria de ter visitado, os amores escaldantes que gostaria de ter vivido.

Sempre escrevera para se sentir vivo. Quando escrevia, era como se abrisse portas mágicas para um mundo onde o ar era doce e a vida acontecia. Publicar, ganhar prémios e acumular reconhecimento não tinham passado de consequências bem-vindas de um ato que, para si, significava vida. Sem a escrita, não sabia viver. Sem a escrita, não tinha ar puro para respirar nem água límpida para beber. Sem a escrita, não havia luz nem cor, música nem melodia. Não se considerava um escritor. Não. Considerava-se antes um contador de histórias escritas. E, naquele momento, por não ter escrito uma única história há um tempo infindo, sentia-se fraco, frágil, esmaecido, quebradiço, doído, e moribundo.

Se pelo menos tivesse alguém com quem partilhar o seu sofrimento... Mas não tinha. Os pais, as pessoas com quem aprendera a ler, a escrever e a dar, tinham partido há muito. Amigos? Os seus verdadeiros amigos tinham ficado na sua terra natal e, com os anos, também eles tinham partido. Amores? Paixões? Quando, ao longo da sua carreira, lhe tinham perguntado pelos seus amores e pelas suas paixões, respondera invariavelmente que a sua paixão era a escrita e o seu amor a literatura. Mas não era verdade. Não, não era verdade.

Levantou-se e olhou pela janela. A noite avançava, serena e impávida, e a Lua percorria o seu arco celeste, ambas indiferentes às suas penas, alheias ao facto de que os astros cintilantes que as acompanhavam lhe faziam lembrar a mais reluzente de todas as estrelas. A sua estrela.

O seu cabelo fora da cor do ocaso, de um ruivo escuro e profundo, e ainda conservava nos dedos a sensação de prazer que sentira ao enrolar neles as suas madeixas sedosas. A sua pele lembrara-lhe as camélias de inverno, de um branco luminoso e saudável, coberta por uma miríade de pequenas sardas encantadoras. Os seus olhos, verdes e inteligentes, tinham estado sempre atentos à injustiça e à dor que os rodeavam. A sua boca, de um tom rosado e natural, estivera sempre pronta a sorrir, sempre disposta a dizer uma palavra de conforto e de esperança. A sua voz, ligeiramente rouca e grave, fora capaz do mais suave sussurro, da mais bela canção, da mais comovedora prece, da mais pura gargalhada. O seu corpo, belo e delgado, fora forte e habituara-se rapidamente ao trabalho e às durezas da guerra. Que perfeita fora a sua estrela. Perfeita para si… Mas a guerra roubara-lha. E, depois dela, não voltara a encontrar a perfeição.

Com um esforço hercúleo, desviou o olhar do céu estrelado e dirigiu-se novamente para a secretária usada. Abriu a gaveta central e, a um canto, viu a caixa dos analgésicos que tomava para enganar os achaques da velhice. Sabia perfeitamente que se tomasse todos aqueles comprimidos estaria morto muito antes de o despontar dos primeiros raios de Sol, muito antes de alguém sequer suspeitar. Seria uma morte simples e limpa. Não daria qualquer trabalho a ninguém, nem sequer à dona da pensão, à qual entregara um cartão do seu advogado para qualquer eventualidade. E partiria, finalmente, ao encontro das únicas pessoas que amara e que há muito o tinham deixado. Ao encontro dos pais. Ao encontro dos amigos. Ao encontro da sua estrela.

Pegou na caixa de comprimidos e sentou-se novamente diante da velha máquina de escrever, como se esta pudesse ajudá-lo a decidir-se pela vida ou pela morte. Estava disposto a apostar tudo naquele momento. Não podia continuar assim. Ou respirava ou sufocava. Ou vivia ou morria. Estava saturado daquela terra de ninguém, lúgubre e insalubre, que não era vida nem morte. Pousou a caixa de medicamentos na secretária e, expectante, deslizou novamente os dedos sobre o teclado.

Esperava ver surgir histórias que nunca tinha vivido, personagens que nunca tinha conhecido, aventuras que nunca tinha experimentado. No entanto, quando por milagre os seus dedos começaram a martelar as teclas gastas e estas emitiram sons que para si eram mais importantes do que as batidas do seu próprio coração, contaram as histórias vividas. Histórias sobre a sua infância, a sua juventude, os seus pais, os seus amigos, a sua estrela, a guerra e as perdas insuperáveis.

Nessa noite, os seus dedos não se limitaram a mexer-se. Nessa noite, não se limitaram a dançar. Nessa noite, ganharam asas e levantaram voo acima das suas inseguranças e dos seus medos. Nessa noite, voaram e planaram acima das suas dúvidas e das suas incertezas. Nessa noite, adejaram e mergulharam no mais profundo do seu ser. Nessa noite, como um bando de andorinhas velozes e alegres, os seus dedos despediram-se do inverno cinzento e fizeram renascer a doce primavera.

Quando a primeira luz da aurora surgiu no horizonte, Serra colocou a última página do seu novo romance em cima da resma de folhas escritas e guardou a caixa de analgésicos dentro da gaveta. Olhou para a fotografia dos pais, reviu mentalmente os rostos dos amigos e da única mulher que amara, e agradeceu-lhes. Tinham-lhe salvado a vida.

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