A Opinião de Miguel Real
A DESUMANIZAÇÃO
2014-09-041. - Contextualização
Lirismo não se harmoniza com abjeccionismo. Aquele pressupõe uma linguagem poética e sentimental; este, uma linguagem crua, violenta e horrorizante; aquele, um léxico versado sobre a paixão; este, um léxico vil, repelente, ignóbil e desprezível. O milagre literário de A Desumanização (2013), de Valter Hugo Mãe, reside justamente no paradoxo de conseguir cruzar e harmonizar com sucesso estético estes dois tipos de linguagem.
Com efeito, A Desumanização entrelaça de um modo admirável o abjeccionismo característico das narrativas de Rui Nunes ou de Gonçalo M. Tavares e o lirismo peculiar da tradição poética portuguesa. Assim, no todo da obra em prosa do autor, este é o primeiro livro que entretece de um modo muito pronunciado o abjeccionismo, constituído por elementos socialmente patológicos ou desviantes, e um lirismo neo-romântico, como se, neste romance, Valter Hugo Mãe tivesse cruzado o estilo naturalista dos seus primeiro e segundo romances, o nosso reino e o remorso de baltazar serapião, com o estilo lírico de O Filho de Mil Homens - e é neste sentido que A Desumanização deve ser literariamente estatuído na obra do autor: o resultado original e bem conseguido de uma obra ficcional iniciada há praticamente dez anos em que a multiplicidade de temas e estilos (recorde-se o estilo realista de A Máquina de Fazer Espanhóis, ou a incursão no fantástico do parto da personagem anã em O Filho de Mil Homens) se reúnem, em 2013, na publicação de A Desumanização com belíssimas imagens introdutórias de Cristina Valadas, cujo sentido, simultaneamente lírico e monstruoso, reenvia com perfeição para o conteúdo do romance. Significa, igualmente, que Valter Hugo Mãe, neste romance, como corolário de dez anos de escrita em prosa, atinge um patamar de maturidade literária difícil de alcançar e, alcançado, de superar.
2. - A Desumanização: sublime e assombro
Dificilmente se converte em escrita poética o conhecimento de um país se o não amarmos. A Desumanização é o resultado do amor (no sentido de encantamento) do autor pela Islândia, o país da neve, do gelo e dos fiordes: "que maravilha, as fundas dos vulcões que respiram e aguardam. Que maravilha, a espessura das montanhas que deitam pé ao debaixo das águas e aguardam. Diziam os velhos carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos" (p. 22). Este amor vazou-se em duas vertentes: a atracção pela paisagem inóspita mas sublime, simbolizada na imagem do "fim do mundo", na "boca de Deus", e o assombro ou espanto pela luta poderosa dos islandeses contra um ambiente hostil. São as duas marcas semânticas que detectamos ao longo de todo o romance: o sublime e o assombro, que, cruzados ambos, geram positiva e negativamente o lirismo e o abjeccionismo.
O sublime metamorfoseia-se numa linguagem apaixonada, lírica, por vezes com o sentido sintáctico subvertido, e o assombro na criação de personagens que se caracterizam por serem sempre mais ou menos que humanas.
Neste sentido, o lirismo e o violento abjeccionismo do romance sintetizam-se no horizonte de uma escrita fantástica. Por exemplo, na p. 25, a identificação da menstruação de Hall com “flores de sangue” é de imediato seguida pela emergência da inexcedível “boca de deus”, um fundo precipício natural (“poço infinito”) que, porque desconhecida a sua “fundura”, se identifica com a realidade transcendente de deus, já que, se todo o conhecido é humano, “deus era o desconhecido”.
Com efeito, o horizonte do fantástico (o sublime, o que espanta e assombra pela beleza e pelo horror) confere a este romance um plano de irrealidade sobrenatural, mais mítico que metafísico, desenhado pela imaginação da narradora. Por este facto, o realismo, como linha estilística, nas suas diferentes versões literárias, encontra-se de todo ausente de A Desumanização, ainda que a descrição e a narração contenham elementos realistas.
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