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A Opinião de Miguel Real


“ESCRITA FEMININA” E “NO FEMININO”

2014-04-28

A Paixão Segundo Constança H., de Maria Teresa Horta, título fervorosamente lispectoriano, condensa, nas suas três centenas de páginas, o retrato absoluto e perfeito do que se convencionou designar por “escrita feminina” na história da literatura do século XX, designação que o nosso século, após a indubitável libertação e independência da mulher nos últimos 50 anos, está substituindo por “escrita no feminino”.

Pela primeira designação, militante e prosélita, referencia-se uma vertente da narrativa que evidencia a repressão sobre a mulher por uma sociedade constituída dominantemente por instituições masculinas. No caso da literatura portuguesa, aponta-se o conhecidíssimo exemplo de Judith Teixeira (1880 – 1959). Pela segunda designação, refere-se uma literatura dominada por sentimentos, emoções e paixões, atribuindo uma especial significação aos valores do corpo e, dentro destes, ao erotismo. Neste segunda vertente, o autor português que mais fortemente difundiu os valores da escrita “no feminino” foi, curiosamente, senão paradoxalmente, um homem: António Alçada Baptista, nomeadamente em Os Nós e os Laços (1985), Catarina ou a Sabor da Maçã (1988) e Tia Suzana, Meu Amor (1989). Porém, autoras como Natália Correia, Inês Pedrosa, Hélia Correia (sobretudo Adoecer) e Ana Cristina Silva (Mariana, Todas as Cartas, 2002, A Mulher Transparente, 2004, e Bela, 2005) merecem especialíssimo destaque.

A obra de Maria Teresa Horta institui-se, na historiografia da literatura portuguesa recente, como a mais eminente representante da primeira vertente, tanto na poesia quanto no romance, sobretudo em A Paixão Segundo Constança H., de 1994, ora reeditado (2010). Precursora da consciencialização social da existência de um olhar feminino, militante da dignificação da mulher na sociedade, a obra de Maria Teresa Horta institui-se, hoje e já, como parte integrante do património cultural português no que se refere à longuíssima luta de independência da mulher no seio das instituições sociais nacionais desde o momento auroral das sufragistas republicanas, nos princípios do século XX, até à actual conquista pelas mulheres de lugares proeminentes em todos os sectores da sociedade.

Neste sentido, A Paixão Segundo Constança H. estatui-se como um romance hoje já histórico, reflector de uma realidade, se não totalmente ultrapassada (note-se o predomínio de “violência doméstica” sobre as mulheres; note-se a pequeníssima taxa de mulheres empresárias e de mulheres exercendo altos cargos políticos), pelo menos fortemente suavizada. Dificilmente seria possível, hoje, que Henrique (o marido) conseguisse internar a mulher (Constança) num asilo psiquiátrico, proibindo a visita dos filhos e sujeitando-a a tratamento de choques eléctricos. Porém, romance também intemporal enquanto explosão narrativa de sentimentos líricos e eróticos da mulher sobre o seu próprio corpo (causa maior da censura social e do esquecimento histórico sobre os livros de Judith Teixeira), seja atraído pelo corpo masculino (o marido), seja pelo corpo feminino (Adele). Constança paga com a hospitalização forçada (raptada de casa amarrada numa “camisa de forças”) a libertação e a exploração sentimental dos instintos sexuais que lhe dominam a consciência. Como uma Medeia moderna, fundindo crime com castigo, a narradora leva Henrique, o culpado directo da repressão sobre Constância, ao suicídio na banheira numa cena memorável (digna de um filme) presenciada pelos filhos, regressados da escola.

Escrito na totalidade segundo um estilo lírico (de cada frase marcante se podia tecer o princípio de um poema), A Paixão Segundo Constança H., um romance de culto, concentra o universo semântico dos valores femininos como raras vezes se viu na nossa literatura – a repressão sobre a sexualidade feminina, considerada demoníaca, lugar da luxúria e do pecado; a sufocação do sentimento; o encarceramento dos códigos femininos, considerados socialmente inferiores, caprichosos, infantis (chorar, ler romances, enfeitar-se, pintar-se…); a identificação da fala da mulher com o lugar psicológico do artifício, da birra, da mania, da esquisitice, da extravagância; a identificação exclusiva da mulher com a maternidade, mas sem a atribuição dos aspectos mais vincantes da educação; o delírio ou o devaneio mental como marca natural feminina, com disposição para a alucinação; a mulher como ser vocacionado para a ignorância, crédula e supersticiosa por natureza, incapacitada para assumir cargos de responsabilidade e funções que exigem frieza de raciocínio…

De leitura e estudo obrigatórios como marca de um tempo, ainda não superado na sua totalidade, A Paixão Segundo Constança H. constitui-se como um romance emblemático da vertente da “escrita feminina” na literatura portuguesa dos últimos 50 anos, momento dialecticamente necessário para que as novas gerações de escritoras (e escritores, como Alçada Baptista) se exercitassem sem constrangimentos na prática de uma “escrita no feminino”.

Miguel Real

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