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A Opinião de Miguel Real


UNIVERSO CONCENTRACIONÁRIO

2014-04-14

Nuno de Figueiredo publicou o ano passado o romance Rendição e Trevas, Prémio Literário Alves Redol, que será entregue em cerimónia a decorrer no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, no próximo dia 23 de Abril.

Autor de diversos romances, entre os quais recordamos Os Sinos de S. Bartolomeu (2002) e A Ilha de Arcangel (2006), Prémio Vasco Branco 2005 da C. Municipal de Aveiro, e Vida e Sombra (2013), Prémio Literário Miguel Torga, Nuno de Figueiredo possui uma escrita clássica, um vocabulário clássico e intelectualizado, personagens definidas de um modo clássico (tanto física quanto mentalmente) e compõe as suas narrativas segundo estruturas clássicas. Porém, Nuno de Figueiredo não é um autor clássico, ao modo oitocentista, e também não é, evidentemente, um escritor modernista, ao modo dos actuais escritores fragmentaristas, cujas histórias são desprovidas de unidade romanesca.

Verdadeiramente, diríamos que Nuno de Figueiredo é um escritor intemporal, que, sobre a utilização de uma gramática clássica e usando processos clássicos de construção do romance, explora temas actuais segundo dados da actual psicologia. É o caso do romance ora editado, Rendição e Trevas.

Neste romance, Nuno de Figueiredo torna-se mestre na descrição de um universo concentracionário, em ambientes enclausurados, nos quais predomina o mistério e dos quais foge toda a esperança. Uma personagem solitária, Maurício Abreu, engenheiro, que perdeu toda a família, igualmente abandonado pela amante ucraniana Liuska, chega a um povoado marítimo para a dirigir a construção de um pontão. Defronta-se com um conjunto de personagens misteriosas (uma cega erótica, a escritora Selma Veiga, a única habitante que vislumbra um veleiro branco no horizonte da praia, a solitária Simone Duvergé e a sua criada Burda, um conjunto de idosos reformados e inúteis, idos para o hotel para terminarem os seus dias de vida), bem como as personagens funcionais do povoado, o padre Morales, um jesuíta castelhano, o gerente do hotel, Varela, o primeiro a morrer, as duas galantes empregadas gémeas, que Maurício confunde constantemente, o gerente e o ajudante dos correios, o coveiro Ranholas do cemitério, o faroleiro Salvador, a enfermeira Eufrosina…

Entre a comunidade decadente, crivada de personagens misantropas, salienta-se Alice, cuidadora de meninos deficientes, personagem optimista e voluntariosa, vivendo para ajudar os outros.

Neste território separado do restante país por serras e penhascos, ocorre o surto de uma estranha doença fatal, fulminante, que vai matando os diversos membros da comunidade, inclusivamente o médico, inclusivamente o coveiro. A fatalidade estende-se, ultrapassa o cordão terapêutico militarizado que isola o país da comunidade, é lançado um novo cordão (o “Corsário II”), os militares, sem ordens dos políticos, receando a contaminação geral, cortam o mal pela raiz.

Entre o leque de personagens apresentadas, existentes num ambiente mórbido e atormentadas por uma misteriosa doença mortal, Nuno de Figueiredo descreve a continuação da vida normal possível, sem exploração fácil do desespero, do pânico, do terror colectivo ou individual, como se todos se tivessem “rendido” ou resignados no seio das “trevas”. Mesmo Maurício, mesmo a optimista Alice…

Metonímia de Portugal, um povo rendido a viver no seio das trevas, que nem poupa Alice, a senhora que vive para cuidar de crianças deficientes.

Bem merecido Prémio Literário Alves Redol.


Rendição e Trevas,

Prémio Literário Alves Redol 2011,

MinervaCoimbra/C. Municipal de Vila Franca de Xira, 181 pp., 16 euros

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